Walter e Fabiano conheceram-se em Brasília. Fizeram amizade na noite.
Fabiano acabava de chegar em Brasília, e vinha do Paraná. Não conhecia ninguém.
Mas tinha uma cara de pau, que Deus me livre. Isso, uma bela face e um bom
carisma.
Quando ele pediu um cigarro para Walter este último já ia negar, é claro.
Tem coisa mais chata que cara pidão? Que vá comprar o seu maço, pensou. Mas
Fabiano era tão legal e gente boa, que não só Walter acabou dando o cigarro de
bom grado, como acabaram os dois bebendo na mesma mesa, e terminando a noite em
uma boate azarando as gatas.
Encontraram-se outras vezes, e a amizade se fortaleceu.
E descobriram que ambos fizeram publicidade na faculdade.
Fabiano passara recentemente em um concurso no Ministério da Agricultura
e Abastecimento, para fazer a programação visual do lugar. Não tinha muita
grana – o Poder Executivo não paga muito.
Já Walter trabalhava em uma agência de publicidade no Pátio Brasil, um
shopping da cidade no Setor Comercial Sul. Tinha ainda menos bufunfa, a
iniciativa privada paga pior em Brasília. Isso sem falar na possibilidade de
perder o emprego. Estabilidade era coisa
de concursado.
Encontravam-se de vez em quando no Balaio Café, para dançar um samba,
ouvir um chorinho, ou simplesmente bater um bom papo, com uma birita geladinha.
E foi lá uma vez, no meio da semana, quando cai o movimento nos bares,
que repararam em quanta gente sentava nestes dias sozinha. Só elas, uma garrafa
de cerveja e seus smartphones.
Uma delas era uma moça, mais para feinha. Parecia um tanto triste. De vez
em quando tirava os olhos do seu aparelho, e ficava mirando o vazio,
melancólica.
Já meio bêbado, Fabiano, que era mais impetuoso, levantou-se e foi para a
mesa da moça, sob os protestos de Walter:
- Ô, cara, para onde você vai?
- Peraí que eu já volto!
E não foi que o raio do Fabiano trouxe a moça para a mesa deles?
E foi aquele esquema, um tanto chato para o Walter: a garota falando do
bolo que havia levado de uma paquera. E Fabiano ouvindo a conversa atento.
Já estava ficando tarde, o bar foi fechando. Trocaram telefones com ela,
aquele lance de educação, sem muita esperança de se reverem. Mas tinha sido um
papo legal.
Quer dizer, exceto para o Walter.
E em outros dias, o Fabiano passou a fazer o mesmo: escolhia quem estava
solitário em uma mesa, e puxava papo.
O Walter estava ficando meio de saco cheio dessa história. Mas tentava
lidar, gostava da companhia do Fabiano. E no meio das histórias tristes, o
Fabiano dava suas tiradas.
Às vezes, nem o Walter, emburrado, conseguia segurar, e dava risada
junto. Estava começando a ficar divertido aquilo.
Nas boates, começaram a caçar quem ficava de canto, assim, meio murcho. E
logo diziam uma palavra, davam um jeito de fazer a pessoa se divertir com eles.
O Walter entrou na brincadeira. E agora era ele, depois de uns goles de
tequila, quem chamava alguém mais quieto para dançar com aquela turma estranha
de solitários anônimos. Juntavam uma turma de cinco ou seis pessoas, e ficavam
se divertindo o resto da noite.
E foi daí que Fabiano captou o que estava rolando. E cochichou com o
Walter que podiam marcar umas festas lá no apartamento dele.
O Fabiano morava em um apartamento bem grandinho na 415 Norte. Tinha
alugado por uma pechincha, um verdadeiro achado.
E o Walter embarcou na do Fabiano. E começaram a espalhar no boca a boca
e no whatsapp dos solitários o barato
de se encontrarem todos em um lugar só, ao som dos Smiths, do The Cure e do The
Doors.
O Walter tinha uma lista ótima de músicas no seu notebook. E ia
discotecar a festa.
Foram umas dez pessoas. Ótimo para uma festa de apartamento. O Fabiano
descolou umas luzes, tirou os móveis da sala, foi um sucesso.
E uma vez por mês repetiam o evento, que agora tinha nome: Clube dos
Corações Solitários.
As festas começaram a ficar cada vez mais cheias. E nessas, tanto o
Fabiano quanto o Walter se deram bem, e descolaram umas garotas.
O Fabiano conheceu a Dinorá, o Walter, a Raimunda. Que ao contrário da
rima, era boa em todos os quesitos. Um rosto lindo, e uma cabeça boa também. E
excelente conversa.
A Raimunda falava de tudo, de filme alemão a mapa astral. O Walter também
era meio culturete, e chegado em um esoterismo. Todo mundo achava que eles
combinavam.
Mas só ficaram algumas vezes. E uma vez o Walter foi para a festa sem a
musa. É, tinha acabado de vez.
Por isso o Walter começou a ficar meio enciumado da Dinorá. O Fabiano não
largava dela, a relação entre eles estava ficando séria.
O que ninguém contava era que o Walter, com aquela pose toda de machão e outsider, tinha um quê pelo Fabiano.
E isso o Walter não confessava nem para ele mesmo. Para ele era uma questão
de amizade, de amigo-quase-irmão, e só.
Mas de repente o Walter dava umas vaciladas. Era uma festa que não dava
para ir, a outra também não. E quem costumava discotecar tudo era ele. O
Fabiano dava um jeito, botava umas músicas que conhecia, mas não era a mesma
coisa.
E logo o Clube dos Corações Solitários, que era sempre tão cheio, perdia
os frequentadores.
Até uma vez em que vieram no dia marcado só dois gatos pingados. Mas com
o Fabiano não tinha essa: serviu um uísque pros caras, e ficaram conversando
até de manhã.
Mas o Fabiano sacou que a festa acabara de vez.
E um dia, quando a Dinorá ia viajar para Belo Horizonte, para um
congresso de sociologia, perguntou ao Fabiano porque não chamava o Walter para
uma conversa. Sentia uma ponta de remorso, e que o problema do Walter era ela.
Ela ia ficar fora uma semana, não queria que eles deixassem de serem amigos.
Depois que Fabiano deixou Dinorá no aeroporto, resolver chamar Walter
para uma conversa só os dois.
Quando o Walter soube que a Dinorá tinha viajado, acabou aceitando.
Foi uma noite ótima, o Fabiano pôs um disco do Cole Porter para tocar –
ele tinha uma coisa meio hipster,
saudosa do velho bolachão, tinha uma coleção deles.
De surpresa, lá fora, a chuva caiu forte, relampejando, como acontece às
vezes no fim de maio – o último suspiro de chuva, prenúncio da estação seca. E
que às vezes é tão forte em Brasília que chega a inundar as ruas.
Mas ali dentro, com uma boa música, criava um clima aconchegante entre os
amigos.
Botaram o papo em dia, enxugaram uma garrafa de Smirnoff fazendo caipiroska na cozinha. E numa dessas, enquanto
Fabiano preparava mais um drinque, o Walter abraçou ele pelas costas de
brincadeira.
Fabiano, sempre descolado, levou-o para dançar na sala. Estava tocando
Billie Hollyday. E foram naquela onda, dando muita risada. O Fabiano sempre
levando na palhaçada.
E começaram a dançar mais agarradinhos... Botaram um a cabeça no ombro do
outro. E algo bateu entre eles.
Quando deram por si, beijavam um ao outro com desejo. E tiraram as roupas
ali mesmo.
Eles já dormiam quando Dinorá entrou no apartamento. O voo fora cancelado
por causa do mal tempo.
Ela viu aquelas roupas espalhadas na sala... E abriu a porta do quarto
lentamente. Para ver, à meia luz do abajur, Walter e Fabiano deitados nus na
cama, nos braços um do outro.
Não teve dúvidas. Fechou a porta do quarto sem fazer barulho. E pegou um
táxi de volta para sua própria casa.
E não se esqueceu, antes disso, de jogar sua cópia da chave por baixo da
porta do apartamento de Fabiano.
De manhã, quando percebeu a chave jogada por baixo da porta, Fabiano
tentou ligar para Dinorá, mas ela não atendia.
Walter ficou envergonhado, catando suas roupas na sala, e se vestindo.
Fechou a porta do apartamento sem olhar para Fabiano. Que estava sentado no
sofá, só de cueca, tentando ligar outra vez no celular.
Assim que Walter entrou no seu carro, as lágrimas encheram seus olhos,
até caírem sobre o seu colo. E começou a chorar, soluçando. Descobriu que
estava perdidamente apaixonado.
Foi até sua casa nesse estado. E chorou deitado na cama, ainda vestido,
até pegar no sono.
Depois disso, Fabiano e Walter ficaram meses sem falar um com o outro.
Assim que acordava, Walter se lembrava de Fabiano. E esse pensamento não
o abandonava durante todo o dia.
À noite, saía sozinho, bebia muito, e conheceu uma galera da pesada.
Walter enxugava mesmo. Tomava todas, ficava doido, dizia o que dava na
telha. No dia seguinte, destruído, já não conseguia ir trabalhar. E de tanto
faltar ao emprego, acabou despedido.
Sem outro jeito, voltou para a casa dos pais. O que foi bom: sem grana,
não tinha como seguir aquele povo estranho que conhecera.
Mas ainda fumava muito, um maço de Marlboro
todo dia, e ficava direto em frente à TV, sentindo-se a pior pessoa do mundo. Adormecia
no sofá, às vezes. E no dia seguinte, assim que abria os olhos, novamente vinha
à sua mente a figura bela e risonha de Fabiano.
A cada programa que assistia, a cada revista que lia, via algo de que o
amigo iria gostar. Relembrava os bons papos, os tempos do Clube dos Corações
Solitários. E se entristecia.
A família não entendia nada. Achava que era por causa da demissão. E
empurrava o Walter, sem saber o que fazer, para sair daquele clima e tentar
achar um emprego novo.
- Demissão não é o fim do mundo – dizia o pai, sem conseguir esconder o
ar de desgosto.
No fim do ano, a mãe de Walter, escondida do pai, deu um dinheiro para
Walter:
- Vai, meu filho, vai curtir. Esquece os problemas. Tem uma festa boa de
réveillon hoje.
E Walter pegou o carro, que não vendera apesar de tudo. Parecia que ia
ser legal o réveillon no Iate Clube.
Mas quando chegou lá... Quem ele vê vestido de branco, com uma garota
nova ao seu lado? O velho amigo, agora quase um desconhecido, o Fabiano.
Quase todo mundo estava de branco também, e Walter destoava com seu
casaco de couro e sua camisa dos Ramones. E quando os olhares dele e de Fabiano
se cruzaram... Fabiano virou para o outro lado, como se não o tivesse visto.
Walter sentiu mais uma vez as lágrimas encherem seus olhos. E antes que
desabasse, foi até o banheiro. Tentou passar uma água na cara, mas não podia se
conter. Então se trancou em um reservado, e chorou tudo o que tinha para doer.
Mas isso não foi o suficiente. Saiu de lá, o choro já havia passado, lavou
a cara outra vez. Ainda sobrara algum dinheiro. E comprou a bebida que podia no
bar.
Já era umas três da manhã quando um cara trocou olhares com ele. Tudo bem
discreto. O rapaz só piscou, convidativo, e apontou a saída.
No estacionamento mesmo se beijaram. E Walter o seguiu até o apartamento
dele.
Quando terminaram, o dia clareava com as primeiras luzes da aurora. Walter
despediu-se secamente do fulano, e vestiu-se logo.
E dirigiu de volta para a casa dos seus pais, na 316 sul. Mas quando
chegou no bloco não foi para o apartamento deles. Pegou o elevador até o último
andar. E para sua sorte, a entrada da cobertura estava aberta. Só subiu alguns
lances de escadas, e abriu a porta.
Lá fora, o ar frio misturava-se ao som dos primeiros passarinhos. Acima
do sexto andar, a cidade parecia tão calma naquele horário. O sol começava a se
levantar, os raios dividiam-se entre as nuvens, pintando-as de um laranja
avermelhado.
Walter subiu a beirado do prédio, e ficou ali de pé. Não tinha coragem de
olhar para baixo.
Mais um passo...
Então mirou aquele céu da cidade, esplendoroso, que só existe na capital
do país. Dali podia ver o horizonte, a quilômetros de distância.
E lembrou-se que era naquele horário que costumava viajar com os pais de
carro para o Rio de Janeiro. Costumavam aprontar tudo de madrugada, e pegavam a
estrada assim que o sol nascia.
Lembrou-se da curtição que era aquilo, ele e os pais comendo sanduíche
que levavam em um isopor. Cantavam no carro, o pai contava histórias da família...
A primeira vez que viu o mar quando chegaram...
Do dia em que o pai o ensinou a empinar pipa. Do Parque Ana Lídia, onde
brincava na areia, e do brinquedo do foguete, com uma escada por dentro, onde
subia e descia.
Do primeiro beijo, em uma menina do colégio. Da primeira vez que olhou outro
garoto com desejo, sem entender muito bem o que acontecia consigo mesmo.
Da turma debaixo do bloco, onde brincava de pique-pega. E das árvores
onde costumava subir, atrás de uns frutinhos pretos. Tinham gosto de nada, mas
era tão bom procurar e colhê-los...
E foi lembrando tudo isso... E de repente o Fabiano, as festas, as
bebedeiras, tudo isso pareceu tão pequeno.
Tinha tanto o que viver, como até ali já vivera.
Daria novos passos.
Mas não um passo ali... Na beira do abismo.
E desceu da beirada. Saiu da cobertura. Foi direto para o apartamento de
seus pais, que ainda dormiam. Tirou toda a roupa, e dormiu de cueca debaixo do
edredon quentinho.
Alguns dias depois, foi procurar o Fabiano. Se ligasse, sabia que ele não
ia atender. Por isso foi direto para onde o amigo morava.
No interfone, uma vez feminina atendeu. Não o conhecia. Foi perguntar ao
Fabiano.
Walter ficou embaixo do bloco, na expectativa.
Mas o Fabiano pediu para ele subir. A porta fez um click¸e abriu.
Conversaram muito. A namorada do Fabiano era que nem ele, bem alto
astral. E trouxe um café para eles.
Walter gostou logo dela, que se chamava Pâmela.
E depois daquela conversa, a amizade voltou aos eixos. E o Fabiano e a
Pâmela deram a maior força para o Walter. Ajudaram ele a espalhar currículo,
perguntaram para todos os amigos se alguém sabia de uma vaga.
Que logo pintou nos classificados do Correio Brasiliense. O Walter tinha
um bom portfólio, e conseguiu o emprego.
Ele continuou na casa dos pais, e optou, em vez de se mudar e pagar
aluguel, matricular-se em um bom cursinho à noite. Aprendeu a lição, e quer passar
em um bom concurso.
Mas Fabiano e Pâmela são mesmo bons amigos. Os dois resolveram fazer uma
surpresa para Walter.
Pois querem arranjar um namorado para ele.
E resolveram reabrir o Clube dos Corações Solitários. Agora em versão
gay. Para dar aquela força para o Walter.
Pois amizade verdadeira resiste a qualquer teste, do tempo e dos
problemas.
Mas apesar de ele não transparecer, a melancolia de Walter nunca passou
completamente. Mas Walter permanece vigilante, e não a deixa crescer. Ela
continua uma companhia constante dentro dele. Mas ele sente que ela permanecerá
pequena e silenciosa, se ele sempre observar o seu presente, e as inúmeras possibilidades
de cada dia.
Antes de mirar novos amores, sempre olhará antes para si mesmo.
Nada novo. Quem é que não faz, ou nunca fez isso? PNC!