Pirei no Conto

Pirei no Conto

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O Gato













Deixo a porta de casa aberta no fim de tarde. O vento entra pela janela e sai por essa mesma porta, me aliviando do calor.
                E pela porta entra um gato. De quem é o gato? De onde ele veio? Virá de outro andar, escapado por uma fresta, à revelia e distração de seu dono?
                Mas ele nada diz. Apenas me olha. Com olhos felinos.
                Bebo mais uma vez de minha xícara de chá, sem pensar nele. O dono dará por sua falta, e virá a ele buscar, sem que eu necessite fazer qualquer esforço.
                E olho mais uma vez para o gato, que me devolve o olhar.
                Olho por dentro daqueles olhos. Aqueles olhos de gato.
                E percebo, neste fim de tarde, em que o sol ainda não se esconde, a luz dura e forte de Brasília refletindo na parede:
                O gato é o mundo.
                Me olha com olhos do mundo. Me observa com olhos do mundo. Me vê. Como a mim o mundo veria.
                Olho em seus olhos, com meu olhar ainda mais profundo.
                E o gato a mim se revela:
                O gato sou eu.
                E a mim vê ele, como a mim mesmo vejo a mim.
                Vejo olhando em seus olhos.
                Meus olhos, que a mim me olham, sem me temer.
                Me olho me olhando.
                Me vejo vendo.
                Me observo me observando.
                Mas o que há para ver?
                Sem perguntas ou respostas.
                            Sem pressa ou distração.
                            Eu a ele vejo, ele vê a mim e nos vemos.
                            E a mim, e ao mundo, e ao gato. Sem objeto, sem sujeito.
                            Apenas ver.
                  Lá fora, as crianças correm, os carros correm, as motocicletas correm. Os homens, apressados, continuam caminhando.
                           Tão ordinário olhar de mundo, de mim, de gato.
                           Mas deste momento de fato, sem futuro, sem passado, sem prólogo, sem final, nem ato:
                           - Não, não vou me esquecer.

Enquanto tomo de meu chá mais um gole, nesta tarde em que abri a porta, para deixar da janela o vento correr.

domingo, 15 de novembro de 2015

Um Ano de Blog!!!



No finalzinho do ano passado começava a jornada de escrever um blog de contos... Muitas expectativas e muitas dúvidas: será que vai dar pé? Vai ter criatividade pra tocar tudo isso?

E quase um ano depois, só surpresas! Muitas pessoas vindo agradecer,curtir, elogiar!

Então preparamos essa surpresa, para facilitar a vida dos leitores!

Apresentamos todos os contos de uma só vez, à sua escolha, para reler os contos preferidos e conhecer alguns outros! É só clicar no nome do conto, e voilà!


Comédia

Amor nos Tempos do Iê-Iê-Iê

Valéria Paulette, a Coquete

A Bruxa da Vila Amaury

Licença para o Minuto do Comercial

Um Golinho de Vodca

A Onça

Quem Disse, Berenice?


Romântico

O Clube dos Corações Solitários

Um Presente de Natal

A Flor do Cerrado


Terror

A Herança


Ficção científica

O Amor de Narciso


Drama

O Nome do Jogo

A Flor Orvalhada da Manhã

A Maçã Dourada

O Balão Azul


Sociedade

Nega do Cabelo Mole

Na Calada da Noite

A Isca da Vaidade

A Carícia do Vento sobre as Águas

Os Burocratas


Outros

Após o Café

O Homem sem Imaginação


Crônicas

Doutor Strangelove, ou Como Aprendi a Amar a Coxinha e Fugi para Miami - Só Que Não

Uma História da Carochinha

A Intangibilidade do Encontro



sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Após o Café



Comecei após o último gole de café na xícara, naquela manhã. Peguei primeiro as roupas que já não mais usava. E também as que nunca usaria. Aquelas rasgadas, ou com botões faltando. Também as mais caras, resultado de um impulso de consumo. E que já não combinavam com as outras roupas, nem comigo.
                Doei-as todas ao porteiro do prédio. Com elas vestiria a si mesmo, porteiro, e também aos seus irmãos e os cunhados.
                Quando retornei ao meu apartamento, não me senti bem com as poucas roupas que sobraram. Tudo muito básico. Algumas camisas sem estampa de várias cores, uma calça, uma bermuda para o eventual calor, um par de meias e um par de sapatos. Também as deixei com o porteiro, e fiquei só com a roupa do corpo.
                Depois foram os livros. Organizados em duas vastas prateleiras na sala, como uma pequena biblioteca, para impressionar os amigos. Aqueles ainda não lidos, tirei-os fácil dali. Lembrei  de algumas revistas velhas no quarto, notícias antigas, tão importantes em seus dias, e logo esquecidas. E em sua obsolescência fáceis de descartar.
                Os livros de estudo retirei um por um. Nunca folheados, sombra de uma expectativa de trabalho que se conseguiria com árdua leitura e muitas aulas. Promessa de algum dinheiro e prestígio social.
                Sobre a pilha já formada no chão coloquei os livros preferidos. Estes foram difíceis, sempre tão relidos, assim como os de infância, onde criei as esperanças de ao menos uma vez ser o herói da minha própria história.
E de uma vez só, acabei com o passado e o futuro a mim escritos por pessoas que sequer conheci.
                Por fim cheguei às fotos, às cartas e aos diários. Sim, ainda haviam restado as cartas, lembrança de uma época em que a tinta das canetas e dos sentimentos ainda não havia secado, substituída pela vaidade de lustrar teclados de celular.
                Nelas via a história, não a que outros haviam escrito para mim, mas a história que eu mesmo escrevi, sem maior treino ou habilidade. Também não era a que havia escrito para os outros, nos relatórios de um escritório, nas conversar do dia-a-dia, com sorrisos forçados, palavras bonitas e frases de efeito. Não, aquele era o registro de minha vida acontecendo, a qual me encarava, sem que a ela pudesse mentir. Aquelas imagens e palavras revelavam não só os prazeres sinceramente sentidos, pois afinal eu acreditava ser uma boa pessoa, um bom moço, amigo, filho, irmão, pai, e tudo o mais e essas coisas. Mas também todos os outros sentimentos não prazerosos envolvidos em uma foto linda na praia, de um amor que foi e já não existe. Da criança que um dia era, e agora se tornara apenas sonho. Dos amigos do colégio, dos quais não se sabia o paradeiro, e muitos nem o nome.
                Descartei-os todos.
                Os poucos móveis da sala, os quadros na parede. Em alguns dias estava tudo vazio. Restaram as paredes brancas, com algumas manchas, e alguns pregos fazendo sombra.
                Retirei a roupa que me restava, esquentei a água, e fui tomar um banho.
                Lá mesmo me livrei de minha pele, sem cerimônia. Minha barreira contra os ventos, a chuva, a luz dura e quente que arde no verão. A pele que me protegia, me envolvia, me dava forma, e me separava de tudo, ao mesmo tempo em que me dava um corpo uno. Que me dava um interior e um exterior que se repeliam como a noite e o dia.
                Fui deitar-me no chão do quarto, com o sangue formando poças no caminho enquanto dava passos para fora do box do chuveiro. E deitado, relaxei.
Enfim retirei o meu sexo. Não mais orgulho de um órgão que se infla por si mesmo. Nada a dizer-me que era homem, protetor ou agressivo. Nem o contrário, homem novo, preocupado em dizer-me igual à metade feminina da humanidade, querendo em minha zelosa e complacente patriarcalidade privilegiada conceder as mesmas oportunidades e refugiar-me em minhas falsas obrigações masculinas, impossibilitado pela biologia de conhecer as reais necessidades das mulheres.
E decidido, arranquei-o rápido. Não mais homem, nem mulher.
                Desfiz-me do sistema digestivo, nada mais de sentimentos intestinos, de cólicas ou borboletas no estômago. Retirei com calma a válvula do ânus, nada havia mais a segurar, de diarreias inevitáveis a sentimentos escondidos, ou mesmo prazeres proibitivos, sempre negados.
                O coração, tirei-o do peito com calma. Ah, o coração. O que ainda restaria entre aquelas veias coronárias? O coração era infindável. Levei horas separando-o, as veias e artérias saindo do coração e envolvendo tudo o que restava do corpo, do sexo que já separara, até os pulmões, as mãos, os pés e o cérebro.  
                Os pés foram mais tranquilos. Não tinham mais estradas para percorrer.
                Os pulmões suspiraram uma última vez. Talvez de saudade. Mas do quê? Mas não contestei nem tive pena, e me despedi deles mesmo assim.
                O cérebro pensei que fosse ser complicado, mas quando senti aquela massa gelatinosa, percebi que era fácil me livrar dele. Tantos anos para amadurecer, tantas palavras ouvidas, gostos rejeitados, sabores aprazíveis, perfumes e fedores, visões magníficas e pobres. Tantos anos de registro, desfeitos de uma só vez.
                Os órgãos que sobraram, sem coração, pulmão ou cérebro, ou mesmo pés para conduzi-los, tornaram-se ocos e sem vida, e foram tirados sem esforço. Quase se destacavam sozinhos, fossem os olhos, as orelhas e o ouvido interno, os lábios, a língua e o nariz.
                Terminado o trabalho, joguei as mãos para um canto, dando-me por satisfeito.
                 Mas logo percebi que ainda havia algo. Continuava me sentindo entulhado.
                Logo dei por conta, e peguei minha alma. Lavei e passei a ferro. Esfreguei as manchas de bondade, de tristezas, alegrias, ciúmes, vaidades e maldade. E joguei ao primeiro mendigo que passou por debaixo da janela, feliz com uma alma quase como nova e renovada.
                Desci as escadas, e fui sentar-me ao sol, no asfalto.
                Quanta liberdade! Sem pele para o sol queimar, sem pulmões para ficar ofegante, até mesmo sem nádegas que se queimassem ao contato do chão. Sem coração para duvidar, cérebro questionando ou alma a ser salva.
                E sem olhos para cegar, olhei direta e demoradamente ao sol pela primeira vez.
                Fiquei o resto do dia olhando para ele.
                Vi um por do sol como nunca antes. Um por do sol sem retinas. Sem ver. Luz e cores sem reflexão na carne, sem conduto nervoso, sem cérebro para codificar. As luzes e cores apenas ali estavam. Todas as existentes e possíveis. Um por do sol por uma única vez como é, por inteiro.
                E quando chegou a noite, ainda me sentia inquieto.
                E lembrei-me de libertar-me da mente.
                Tinha tempo, e fui aos poucos. Nunca tinha me acostumado muito com ela, podia ser perigoso. Separei primeiro as memórias, e soprei-as para longe. Depois as emoções, e fui despetalando devagar uma a uma. Sobrou a razão, e vi que não havia razão alguma. E ela evaporou no ar.
                No fim sobrou só minha identidade. Primeiro o meu nome, que se desfez como areia ao ser analizado com mais atenção.
Fiquei só com o meu eu.
E antes que esse eu se dissolvesse entre o céu e as nuvens, a terra e os pedregulhos, ainda tive tempo de ver as estrelas mais distantes, e atrás delas todo o universo. Não havia peso, não havia distâncias, nem fim nem começo. Não havia nada. Mas havia tudo.
E eu era, se um “eu” ainda havia, tudo que fora e seria, tudo que existe e existirá.
Apenas era. PNC!



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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O Nome do Jogo








Naquela manhã de segunda, Henrique chegara àquela pensão na Avenida W3 Sul indicado por um amigo da Faculdade Dulcina, o Dodô. Estava hospedado no apartamento da namorada dele, a Tereza, enquanto não achava um lugar definitivo para morar. O Dodô já morara ali antes, e disse que era bem agradável.
                A Faculdade Dulcina de Moraes fora fundada por uma famosa atriz homônima, quando se mudou do Rio para Brasília. A faculdade encontrava-se no conjunto de prédios chamado Conic, no Setor de Diversões Sul. Na Dulcina e no Instituto de Artes da UnB se concentravam os futuros atores do Distrito Federal.
                Sempre fora o sonho de Henrique ser ator.
No começo de sua adolescência, sua mãe ficara muito doente. Sabendo que estava próxima da morte, ela, sabendo da vontade do filho, disse que apoiaria seu desejo de entrar nessa carreira.
Por isso, desde que a mãe falecera, Henrique  começara a se dedicar ao que acreditava ser o seu dom. Na adolescência, passou a fazer parte de um grupo de teatro amador na escola em Luziânia, onde nascera. E chegou a ganhar um prêmio de revelação juvenil em um festival de teatro em Brasília.
Depois do prêmio, o pai passou também a apoiá-lo. Aquele senhor era dono de um pequeno comércio de produtos agrícolas. E se não era rico, ao menos tinha condições financeiras de pagar a faculdade do filho único, e de mantê-lo em uma cidade com custo de vida mais alto.
                 Henrique, além de talentoso, tinha um ar de galã. Era alto, no seu um metro e noventa, muito jovem, com pouco mais de vinte anos. Tinha uma cabeleira escura espessa e ondulada, e olhos cor-de-mel  amendoados. O sorriso, este cartão de visitas, era bonito, com dentes grandes e fortes, em um rosto magro e anguloso na medida certa. A pele negra era firme e sedosa, sem sinais de manchas.
                Henrique, tanto de talento quanto de beleza, possuía os dois.
                No entanto, como costuma acontecer com os iniciantes, faltava a ele a clareza e confiança nessas qualidades. A juventude, inexperiente, às vezes caminha de mãos dadas com uma dose de falta de segurança, que talvez somente um caminho trilhado por anos possa proporcionar.
                Por isso, foi com certa timidez que tocou a campainha da porta da pensão. Atendeu-o uma senhora, na casa dos cinquenta anos, com um vestido bonito. Estava de salto, muito elegante e perfumada.
                Ela era muito sorridente. Tinha a pele muito branca, os cabelos bem tratados, em tom alourado, e perguntou a ele com uma voz calma se era o Henrique.
                Ele confirmou que era o rapaz que ela esperava.  
                A senhora assentiu com a cabeça, e pediu a ele que entrasse.
               A casa, contrastando com a aparente simpatia e elegância da senhora, não era necessariamente aconchegante. Na verdade, parecia parada no tempo.
Alguns anos antes, e aqueles sofás seriam a última moda. Mas há muito haviam perdido suas cores originais, e no lugar de um vermelho escarlate, restava um salmão quase rosado, resultado de anos de exposição ao sol.
                Algumas estantes de vidro, com estátuas greco-romanas, completavam o ar  decadente: um busto de Júlio César, a deusa da justiça segurando displicente a balança. Por fim, em uma escultura ao lado da porta de entrada, Leda olhava, sem interesse, para Zeus disfarçado de cisne a seus pés.
Uma TV de tubo e uma vitrola antiga nos nichos do armário, feito de madeira compensada e já gasta, completavam o ar cansado daquele lugar.
Apesar disso, o ambiente era limpo e organizado, e o chão de madeira brilhava que dava gosto.
A senhora, com muito bom humor, chamou Carlos para sentar-se com ela dentro da casa. Atravessaram a sala e dirigiram-se à entrada da cozinha. Ao lado dela, via-se uma escada escura, que devia dar para os quartos mais acima.
A senhora entrou na cozinha primeiro, e convidou Henrique a sentar-se à mesa.
Ela abriu a geladeira, tirando de lá um gostoso bolo de chocolate e uma jarra de suco de acerola.
Enquanto ela procurava as louças para pôr a mesa, Henrique notava ao lado uma janela e uma passagem para um pequeno jardim de inverno. Parecia abandonado: o chão estava sujo de terra, e as plantas cresciam de forma desorganizada. Algumas delas estavam secas, como se alguém tivesse se esquecido de aguá-las.
- É meu irmão quem cuida do jardim. – disse a senhora, como que se desculpando, ao perceber o olhar de Henrique – ele é uma boa pessoa, mas um pouco desleixado.
Enquanto Henrique saboreava o pedaço de bolo – delicioso – a senhora revelou sua história.
Seu nome era Odete, e moravam ali só ela e seu irmão. Enquanto ela administrava a pensão, o irmão trabalhava como artesão na Feira da Torre de TV. Não tinha muito estudo, coitado.
Já ela trabalhara, até se aposentar, como secretária em um escritório de advocacia durante muitos anos.
Hoje era viúva, e o marido, tenente reformado do Exército, deixara uma pensão para ela.
- Você quer mais um pedaço de bolo?
- Não, não precisa.
- Só mais um! Aposto que você não tomou café hoje.
Henrique tentou disfarçar sua expressão, mas era verdade. Não havia tomado café, e começara a sentir fome. Não à toa o bolo estava tão bom. A tal Dona Odete havia acertado na mosca.
Como que adivinhando o pensamento de Henrique, ela colocou um pedaço caprichado no prato do rapaz. E encheu o copo de suco dele quase até a borda.
- E você, o que faz da vida, meu filho?
- Estudo na faculdade. E consegui trabalho em uma loja de perfumes, em um shopping aqui perto. Esqueci o nome.
- O Pátio Brasil?
- Isso mesmo.
- Você não é daqui, né?
- Sou de Luziânia.
- Eu ia dizer que você era goiano.
- O sotaque, né?
- É. E onde você estuda? Na UnB?
- Não, eu estudo na Faculdade Dulcina. Quero ser ator.
Mas a conversa foi interrompida por pisadas na escada, a madeira antiga rangendo com o peso. E logo um senhor entrou na cozinha. Tinha cabelos longos e brancos, a barba desgrenhada, com a pele branca e flácida, sem pelos. Estava somente de bermuda, e descalço. E cheirava a cigarro e a bebida.
Olhou Henrique de cima a baixo, com ar de desaprovação. Por fim olhou para a irmã, sem dizer nada. Abriu a porta da geladeira e tirou de lá uma lata de cerveja.
- A essa hora?... – reprovou Dona Odete.
Mas o senhor nada disse. Apenas saiu da cozinha com a cerveja na mão, sem voltar a olhar para eles.
- É o meu irmão, o Antenor, mas a gente só chama ele de Totonho. Hoje é o dia de ele descansar. Ele é assim mesmo, calado. Mas é uma boa pessoa.
Depois do café-da-manhã, Dona Odete levou Henrique para conhecer um dos quartos. Era espaçoso, com um bom armário embutido, e com vista para os fundos.
Haviam duas camas.
Da janela, Henrique podia ver algumas casas em frente, e à direita, a W3, já com bastante trânsito.
- Era o quarto meu e do meu marido – acrescentou ela – mas depois da reforma eu me mudei para um quartinho lá de cima. Você vai dividir aqui com outro rapaz, o Erismar. Tem algum problema pra você?
- Não, está ótimo.
- Então vamos à cozinha acertar as contas? Eu peço pagamento adiantado, tá bom?
- Pra mim está perfeito.
Na cozinha, Henrique preencheu um cheque assinado pelo pai, e deixou-o com Dona Odete. Depois depositaria o valor correspondente na conta dele, enquanto não abria a sua própria.
Na saída, o tal Totonho estava sentado no sofá desgastado. Henrique tentou não olhar para ele, mas foi inevitável.
- Acertou com a velha? – disse de repente Totonho.
Henrique virou-se completamente para o senhor, surpreso.
- Você sabe que aqui é perigoso, né? É cheio de prostituta à noite. Aqui só tem o que não presta. – disse de repente Totonho.
O rapaz ficou atônito. O Dodô não o havia avisado sobre isso.
Dona Odete veio acudir Henrique.
- Para de assustar o rapaz, Totonho. Não liga pra ele, não, viu moço? Parece que não tem o que fazer. Olha, aqui na W3 tem umas mulheres da vida, mesmo. Mas é só de noite, e lá na avenida: não incomodam ninguém. Tenho dó dessas moças... Mas fazer o quê?
- Não tem problema. Isso tem em toda cidade.
- Que dia você vem?
- Amanhã mesmo.
- Ó, toma a chave da casa.
E fechou com carinho a mão de Henrique sobre a chave, despedindo-se.
Assim que a senhora fechou a porta, Henrique pôde ouvir uma discussão se iniciando entre a tal Dona Odete e o irmão dela.
Será que havia tomado a decisão correta?
O Dodô e a Tereza explicaram que apesar do Totonho ser meio esquisito, realmente não incomodava. E a melhor parte era o bolo de chocolate da Dona Odete – até a Tereza já tinha experimentado.
E a Dona Odete ajudava todo mundo, era um amor de pessoa.
Isso fez Henrique sentir-se mais confiante, e com a ajuda de seus amigos, mudou com suas coisas para a pensão.
Dona Odete revelou-se uma grande amiga. E realmente apreciava as artes. Em questão de meses ela tornou-se sua confidente. Henrique contava a ela sobre suas dúvidas quanto ao futuro, como ainda se confundia com as ruas aparentemente iguais da cidade, sobre os seus projetos no teatro.
Dona Odete entusiasmava-se com as histórias do garoto. E quando Henrique tinha alguma cena nova para apresentar no Dulcina, lá estava ela, sempre sorridente, dando forças e aplaudindo o jovem rapaz.
Mimava-o sempre que possível, com mais um pedaço de bolo, ou uma lembrancinha que trazia da rua. Uma vez até comprou uma camisa nova para ele!
E às vezes, Henrique ficava duro. Mas Dona Odete emprestava algum dinheiro, ou dava um desconto no aluguel, dizendo que ele a pagava em outra oportunidade. E quando ele tentava pagar de volta, fazia que nem se lembrava, e recusava as notas que Henrique lhe estendia. Dizia que estava investindo em um novo artista.
E Henrique, que perdera a mãe tão cedo, sentia em Dona Odete quase que uma mãe adotiva, naquela cidade ainda tão nova e estranha para ele.
De vez em quando, Henrique ainda cruzava com a presença parda do Totonho na pensão. Mas não trocava palavras com ele, apesar do olhar sempre enviesado daquele senhor. Parecia reprovar algo em Henrique. Era incômodo, mas Henrique seguia seu caminho, fingindo não se importar.
Um noite, após voltar da faculdade, Henrique revelou a Dona Odete que tinham-no chamado para um teste no dia seguinte, para entrar em um grupo de teatro em São Paulo. Era de um famoso diretor que estava na capital federal. Imagina, ele, em São Paulo!
Mas Dona Odete olhou para ele com um sorriso triste. E ficou com os olhos marejados.
Henrique abraçou aquela senhora. Nunca esqueceria o que ela fizera por ele. E Dona Odete o abraçou de volta, com grande carinho.
O teste era na Asa Norte, na manhã do dia seguinte, bem cedo. Henrique ligou para Dodô para irem juntos. Ele e Tereza se comprometeram a dar uma carona ao rapaz no carro dela, assim que saíssem de sua casa.
Mas no outro dia, na mesa do café, Henrique ainda estava preocupado. Nenhuma mensagem ainda. E nada do Dodô e da Tereza aparecerem.
- Por que não liga para eles? – disse Dona Odete.
- Eu estou tentando, mas eles não atendem. Já mandei mensagem também.
- Mas que confusão... Você não tem nem o endereço?
- Não. Só lembrei da carona. Já tava tão seguro disso que esqueci de perguntar. Só sei que é um espaço novo, lá no fim da Asa Norte.
- Olha, meu querido... – e ela foi abrindo a bolsa – Pega esses trocados. Toma um táxi, que já tá quase na hora. No caminho, você vai ligando para o seu amigo, para saber o endereço.
- Nossa, nem sei o que dizer, Dona Odete!
Henrique pegou o dinheiro, e foram correndo para a porta. Novamente viu o Totonho na sala, assistindo a TV e bebendo uma latinha de cerveja. Mas não tinha tempo para se preocupar com ele.
- Boa sorte, querido!
E Dona Odete deu-lhe um abraço carinhoso e apertado!
E quando o táxi passou por baixo do viaduto acima da W3, entrando na Asa Norte, Henrique decidiu ligar mais uma vez para o Dodô.
Mas quando colocou a mão no bolso... Onde estava o celular? Pediu para o táxi parar, começaram a procurar debaixo do banco do carro, devia ter caído por lá... Nada!
O taxista perguntou a que altura ficava o teatro, mas Henrique não sabia dizer. Só sabia que era no final da Asa.
O táxi ficou rodando ali na altura da 16... Passou nas 200, 400... Depois passou debaixo do Eixão... Foram até as 900, e então subiram pela W5 até o CEUB... Nem sinal do lugar! E a hora passando.
Já passava quase meia hora do horário marcado para o teste quando Henrique por fim desistiu, e pediu para voltar.
Na pensão, procurou o celular em cima da mesa da cozinha. Era o último lugar onde o havia visto. Perguntou a Dona Odete se ela havia encontrado algo. Ela disse que nada.
- Liga pra ele. Vai que ficou no táxi mesmo, e você não achou?
E quando ligaram do telefone fixo da pensão... Ouviram um toque de celular lá em cima, nos quartos.
O toque vinha de dentro do armário, no quarto de Henrique. Ele começou a abrir as gavetas... E finalmente descobriu o aparelho em uma delas... No meio das coisas do Erismar, que dividia o quarto com ele!
Assim que o Erismar voltou à pensão, Henrique perguntou o que tinha acontecido. Erismar dizia que não sabia de nada. Naquela manhã fora à cozinha tomar o café, e tinha ido direto ao trabalho.
Mas Dona Odete não se convenceu. Viu Erismar tomar o café logo depois de Henrique sair. E ninguém mais dera notícia do celular depois disso.
Ficou claro para todos que Erismar passara pela cozinha, havia descoberto o celular sobre a mesa, e escondera o aparelho.
Dona Odete ficou decepcionada com aquele jovem. Não era à toa que de vez em quando ela sentia falta de alguma coisa na casa. E Erismar foi obrigado a abandonar a pensão no mesmo dia.
                Henrique também cobrou de Dodô e Tereza explicações. Eles disseram que haviam acordado tarde, mas que assim que saíram foram correndo até a pensão, ligando o tempo todo no celular para o amigo. Mas ninguém atendia. Se Henrique não tivesse deixado o celular na pensão...
Com pena de Henrique, Dona Odete permitiu que ele ficasse com o quarto todo, somente pagando o mesmo de antes, pelo menos até acharem um novo morador.
E os cuidados de Dona Odete se redobraram. Uma noite, quando estava muito frio, ela colocou um cobertor sobre Henrique, que estava dormindo. Ele acordou, e ela disse para ele ficar tranquilo, ela só não queria que ele pegasse uma friagem. Deu-lhe um beijo na testa de boa noite, cobriu-o com as cobertas e fechou a porta.
A partir de então, este se tornou um ritual entre eles, repetido todas as noites.
Uma vez, enquanto conversavam no quarto de Henrique, com ele já deitado na cama, e Dona Odete sentada ao seu lado, ela colocou uma mão sobre a dele com delicadeza. E começou a acariciá-la. Olhou nos olhos de Henrique com um profundo carinho. E o garoto ficou emocionado. Mais uma vez lembrou-se de sua mãe já falecida.
Henrique sentiu que a relação de confiança entre eles aprofundava-se cada vez mais.
O que não mudou foi a inconveniência do Totonho na pensão.
Uma vez Henrique saía apressado para o trabalho, quando o Totonho, sempre assistindo TV na sala, o interpelou:  
- Você precisa tomar mais cuidado com as suas coisas. Tem muita gente que mexe nas coisas dos outros aqui.
- Só o Erismar. Mas a Dona Odete já tirou ele da pensão.
- Só o Erismar? Eu já falei, meu filho. Aqui só tem gente que não presta.
E deu um trago no cigarro, apagando-o no cinzeiro ao seu lado. Olhando novamente para o rapaz com ar de reprovação.
Enquanto saía, Henrique pensava que o Totonho sim, é que podia sair daquela pensão. Não gostava nem um pouco nele, sempre cheirando a bebida e cigarro.
Mas lembrando-se do celular, uma dúvida restava em sua cabeça. Se o Erismar queria roubar o celular, porque não desligou o aparelho?
E a Dona Odete? Não tinha ouvido o aparelho tocando, enquanto o Dodô tentava ligar para Henrique?
Mas não teve coragem de perguntar isso para aquela senhora. Com certeza no dia estava ocupada cuidando da casa, e não conseguiu ouvir o celular. Tinha medo de magoá-la. E afinal, já estava tudo resolvido.
Na volta do trabalho, Henrique já estava chegando perto da pensão, quando viu Totonho, de repente, sair pela porta da frente.
Estava levando o lixo para fora de casa, quando parou para olhar uma coisa naquele saco preto de plástico. Estaria vazando?
- Ei, Henrique, venha aqui ver uma coisa.
Um tanto receoso, o rapaz chegou perto de Totonho. Este apontava para um rasgo no plástico.
- Olha isso.
Ele abriu um pouco mais o rasgo, deixando evidente a ponta de um papel.
Totonho retirou o papel dali com cuidado. Era um envelope com uma carta. E estava aberto. Totonho leu o que estava escrito no envelope com atenção.
- Menino, acho que isso aqui é seu.
E Henrique, ainda estranhando tudo aquilo, pegou o envelope em suas mãos.
E não pôde acreditar.
O envelope vinha em seu nome. Era de uma rede de televisão do Rio de Janeiro.
Quando abriu a carta, uma surpresa. Era um convite para um teste!  
Mas o que aquela carta estava fazendo no lixo? Com o envelope aberto?
- Eu não sei de nada. Pergunta para a Odete.
Ela estava varrendo a sala quando Henrique entrou com a carta nas mãos, seguido mais atrás por Totonho.
- Dona Odete, o que quer dizer isso? - e mostrou-lhe o papel.
E para surpresa dos dois, Totonho interveio.
- Vamos,  irmã. Abre o jogo. Fala logo! Aconteceu de novo, não foi?
Ela largou a vassoura de lado, e sentou-se no sofá, já chorando.
- Não foi minha culpa!
E Dona Odete confessou tudo. Apaixonara-se por Henrique. E tudo que fazia era para não perdê-lo.
Quando Henrique falara a ela do teste para o grupo de teatro em São Paulo, ela ficou aflita, e decidida a fazer de tudo para impedir que isso acontecesse.
Por isso, quando abraçou Henrique na porta da pensão, naquela manhã de correria, ela sutilmente retirou o celular de seu bolso. Se o seu amigo ligasse, Henrique nunca iria descobrir onde era o lugar. Dessa forma, perderia o teste, e não se mudaria para tão longe.
Como tinha planos de conseguir seduzi-lo, ela teve uma nova ideia, e espertamente deixou o celular nas coisas de Erismar, para acusá-lo e expulsá-lo da pensão. Com isso, Henrique ficaria sozinho no quarto, facilitando tudo.
Aquela noite fria foi a oportunidade perfeita para aproximar-se dele. E a cada nova noite tentava ficar mais perto de seu amor.
Henrique lembrou-se do carinho de Dona Odete em suas mãos, e sentiu-se enojado.
Ela acreditava que estava quase conseguindo envolver Henrique. Quando chegou aquela carta de uma rede de TV, desconfiou que podia ser outro teste. Por isso, colocou o envelope sobre a água quente da chaleira. O vapor amoleceu a cola, e ela pode abrir o envelope, ler a carta, e confirmar seus temores.
Mas ele precisava entender! Foi o amor dela que a fez jogar a correspondência no lixo! Não podia se arriscar a perdê-lo!
                Dona Odete levantou-se, e ainda tentou abraçar Henrique, implorando-lhe perdão. Mas Totonho colocou-se à frente dela, impedindo-a.
                Henrique sentia um misto de raiva e nojo por aquela mulher.
Mas como assim, “aconteceu de novo”?
                - Conta pra ele, Odete! Acaba com isso de vez! – interveio mais uma vez Totonho.
                E ela revelou que não era viúva, mas sim divorciada. Construíra aquela pensão com o então marido. Mas o seu casamento não ia bem. E assim que começaram a chegar aqueles rapazes, dentre eles havia um com que se identificara tanto... Conversavam muito, e ele era tão lindo... Um dia o marido voltou mais cedo do trabalho, e encontrou-a na cama com o estudante.
                Naturalmente se separaram. O marido foi morar em outro estado. Desde então, moravam ali só ela e o irmão, que sem emprego fixo, passou a fazer-lhe companhia.
                - Mas não foi só esse, né, irmã?
                E ela confessou que depois do divórcio, se sentia sempre sozinha... E às vezes se envolvia com algum dos estudantes. Às vezes dava algum dinheiro em troca de favores sexuais, outras horas comprava algum presente.
                Mas só se apaixonara novamente por Henrique.
                Henrique estava horrorizado com tudo aquilo. E decidiu sair da pensão imediatamente.
                E naquele mesmo dia, enquanto seus amigos colocavam as coisas dele no carro de Tereza, teve coragem de se aproximar de Totonho.
                - Aquilo... Aquela cena perto do saco de lixo... Não foi um acidente, foi?
                - Eu conheço a minha irmã. Quando eu vi você com ela, eu sabia que não ia prestar. Quem nem da primeira vez. Eu vi quando ela pegou o seu celular, e levou lá pra cima no seu quarto. Mas você não ia acreditar se eu dissesse. Então fiquei esperando ela dar algum deslize. Sou eu quem pega a correspondência. Quando vi que a carta era pra você, deixei na mão dela, pra ver o que acontecia. Eu sabia que ela ia jogar fora. Depois que ela saiu, foi só posicionar a carta direitinho no saco, e abrir um buraquinho. Fiquei olhando pela janela, esperando você voltar, e saí na rua assim que vi você. O resto você já sabe.
                - E por que você fez isso? Pra me ajudar?
                - Por que eu não presto. Ela não presta também, mas pelo menos eu sou honesto, eu sei que eu não valho nada. Só que ela fica tirando onda de madame, de amiga dos outros. E ainda me esnoba.
                - Mas você me ajudou tanto... Pôxa, obrigado. Acho que você presta bem mais do que você pensa.
                E pela primeira vez apertou a mão de Totonho.
                Henrique foi para o Rio de Janeiro. Passou no teste, e agora faz uma ponta em uma novela na TV.
                E nunca mais se lembrou de Dona Odete.
                Ela que de vez em quando, quando Henrique aparece na telinha, ainda sente seu coração bater mais forte. Mas somente até o rapaz novo da pensão voltar da faculdade. Tão bonito... Tão educado... Conversavam tanto...
                Assim que ele chegar, ela vai pegar mais uma coberta para ele. Afinal, está tão frio hoje à noite, não? PNC!






"Eu, hein? Eu que não queria trombar com essa figura por aí... Que sinistro!"



Ah, que pena... Acabou mais um conto! Mas daqui a quinze dias tem mais! Beijxs a todxs! Mas antes, não se esqueça... Comentários, críticas e sugestões são sempre bem-vindos!


Continue com a gente, e pire no conto! <3

sábado, 22 de agosto de 2015

O Amor de Narciso



Carlos pôs as lentes de contato, e sentiu que por fim chegara à década de 2030. Eram o novo modelo Megalux Delta-49, as primeiras com acesso à internet e GPS, e nelas era possível ver as imagens virtualmente à sua frente.
Na ótica, pediram que Carlos testasse as lentes. Ele piscou o olho direito três vezes, e um menu de opções abriu-se à sua frente. Uma mensagem para os amigos? Era só apertar a tela virtual com um dos dedos, para abrir-se um teclado também virtual.
Escreveu ao seu namorado, William: “Comprei as lentes novas! Partiu cinema?” E ele logo respondeu com um “blz”. Carlos achou meio seca aquela resposta, mas tudo bem.
Experimentou ver um videoclip novo da sua banda favorita pelas lentes. Via as imagens, mas esqueceu-se do som. Pediu os fones de ouvido à vendedora. Eram minúsculos, sem fios, e se encaixavam perfeitamente ao canal auditivo. Além disso, eram quase imperceptíveis.
A vendedora perguntou a ele se pagaria a débito ou a crédito. Ficou bastante impressionado ao conseguir ouvir a música e ao mesmo tempo a voz da vendedora perfeitamente. Mesmo assim fechou o vídeo com um movimento das mãos.
A vendedora explicou que os fones davam ao usuário duas opções. A primeira era escutar exclusivamente o conteúdo emitido por eles. Nesse caso, qualquer barulho externo era abafado. A outra opção era ouvir ao mesmo tempo os fones e os sons do exterior. Isso era feito de tal forma que um não entrava em conflito com o outro, e a música ou voz dos fones era ouvida como som ambiente.
Muito satisfeito, por fim Carlos digitou algumas teclas de seu relógio-smartphone, e fez a operação de crédito diretamente ao anel-celular da vendedora.
Mais tarde, na noite daquela quinta-feira, veio correndo para encontrar-se com William no cinema. Já estava meia-hora  atrasado. Wiliam deu um pequeno selinho sem graça nos lábios de Carlos. Carlos quis abraçá-lo, mas ele se afastou.
Carlos perguntou se estava tudo bem, mas William somente respondeu com um “sim”, erguendo os ombros.
Entraram no amplo corredor do cinema, com várias salas de cada lado. Não havia filas ou bilheteria, pois os lugares marcados eram comprados antecipadamente por smartphone, no mesmo dia. Assim que chegaram à sala certa, um sistema biométrico identificou-os à distância por uma câmera, abrindo automaticamente a porta.
As poltronas marcadas abriram-se imediatamente assim que eles chegaram, por um dispositivo biométrico do mesmo tipo. Se um espertinho tentasse sentar em um lugar diferente do seu, a poltrona simplesmente permanecia fechada.
O filme em 4D começou. Era uma novidade absoluta. Através de um indutor de sensações, além das três dimensões espaciais era oferecida mais uma, a tátil. Era possível sentir, sem ultrapassar o limite do desconforto, vento, chuva, frio ou calor, a luz do sol na pele, e até mesmo uma mão passando suave no rosto.
Era uma maneira dos cinemas competirem com as televisões holográficas, agora onipresentes. Opção perfeita para aquele documentário sobre a chegada recente do ser humano a Marte.
Carlos comentou baixinho a William que seu pai tinha visto aquele filme há poucas semanas. E que ficou procurando onde ficavam aqueles óculos 3D de antigamente, acredita? William deu uma risadinha sem graça. Que estranho. Normalmente William cairia na gargalhada, sarcástico que era.
Após o cinema, durante o café, finalmente William abriu o jogo. Não dava mais.
- É pelo atraso? – Carlos perguntou nervoso.
- Não, não é só por isso. Eu não sei responder, Carlinhos. Teve algo que passou... Eu não sei explicar. Você vive dizendo que vai melhorar. Eu acreditei. Mas parece que sempre falta algo.
- Falta algo pra quê?
- Pra você ser a pessoa que eu sempre quis.
- Ah, tá certo, senhor perfeitinho. Então eu não consigo preencher todos os requisitos para ser o seu namorado?
- Sim. – respondeu William laconicamente.
- Ah é, mesmo? E o que falta pra eu ser esse namorado perfeito?
- Um pouco de mistério, eu acho. Você é previsível demais, Carlos. E carente.
- Eu, carente? Quem é que tava fazendo beicinho na porta do cinema agora mesmo?
- Isso não é carência. É quebra de expectativa. Na verdade...  nem isso. Eu já sabia que você ia atrasar. Sabe o que é? Você não me surpreende mais, cara. Lamento.
- Você lamenta? E eu? Sabe, eu também lamento. Você não sabe o que eu já tive de aturar com você. Esse silêncio, o tempo todo medindo tudo... Esse jeito contido sempre. Nunca sei direito o que se passa na sua cabeça, você nunca me diz nada! Só fica com esse olhar, todas as vezes.
- Definitivamente a gente não combina. Me desculpe.
- “Me desculpe”... Você ganhou, cara! Eu não valho nada, né?
- Eu não disse isso. Eu gosto de você.
- Gosta de mim? Fica aí, com esse ar de perfeição, essa coisa toda aristocrática, esse ar controlado! Agora quem tá de saco cheio sou eu!
- Ok, Carlos. Eu vou me retirar. Com licença.
- Vai, pode ir! Vai, como se não tivesse sangue nas veias! Sabe o que você é? Você é um falso, cara!
Enquanto isso, William continuou caminhando calmamente, sem olhar para trás, até a saída do shopping center.
Assim que chegou em casa, Carlos caiu em lágrimas. Ele amava aquele desgraçado.
Escolheu um filme novo na TV holográfica, e ficou assistindo até tarde tomando sua cerveja chinesa favorita, a Mao.
Já era de noite quando viu uma mensagem na TV. Era o William lá embaixo, querendo subir.
Carlos ficou pasmo com aquilo. O que ele queria falar com ele?
Mas Carlos botou a cabeça no lugar. Não haviam conversado quase nada no shopping. E era a oportunidade de Carlos botar os pingos nos i’s.
Decidiu deixar o pilantra subir. Apertou um botão no menu holográfico, e a portaria abriu lá embaixo.
Quando abriu a porta, William trazia em uma das mãos um pequeno ramo de gérberas, a flor favorita de Carlos. Atrás do ramalhete, William oferecia aquele olhar e sorriso de canto de boca magnéticos.
Sem dizerem nada, abraçaram-se.  E toda a raiva de Carlos foi pelo ralo. Aquele maldito... Não conseguia dizer “não” para William.
Uma coisa leva à outra, e acabaram dormindo juntos.
Inesquecível. Foi a melhor noite que já tiveram.
Já de manhã, quando Carlos acordou, sentiu a cama vazia. Filho da mãe. Sabia que William era frio. Mas não àquele ponto. Nem se despediu. Mas por quê?
Carlos foi escovar os dentes, ainda confuso com tudo aquilo.
Mas quando chegou à sala, William estava sentado à mesa, já vestido. Havia preparado um gostoso café da manhã para os dois. E Carlos suspirou aliviado.
Carlos tocou a mão de William com ternura, que devolveu o gesto agarrando-a forte.
Conversaram como nunca haviam conversado antes. William sempre manteria aquele ar misterioso, mas a neblina que o envolvia havia desaparecido. E era mais aberto e sensível do que Carlos imaginava. Realmente nunca conhecemos completamente aquele que está ao nosso lado. Não conhecia essa faceta de seu namorado.
Conversaram tanto... E quando deram por si, já eram oito horas da manhã.
- Eu preciso ir. – apressou-se William.
- Mas você?... Atrasado pro trabalho? Você nunca está atrasado!
- Tive uma boa razão. – disse com segurança William, dando um leve beijo nos lábios de Carlos.
William levantou-se, e Carlos despediu-se dele ainda de cueca, junto à porta.
Logo que trancou a fechadura, Carlos também começou a correr. Entrava no trabalho às dez.
O dia passou devagar. Carlos só pensava em William, e naquela noite incrível. Trocaram algumas mensagens durante o dia, e combinaram de encontrarem-se no dia seguinte, que já era sábado.
Naquela noite de sexta, alguns colegas de Carlos chamaram-no para um happy-hour em um bar novo, com a última tendência, uma temática punk-indie de bandas coreanas.
Enquanto os outros tomavam algumas cervejas chinesas Mao long-neck (eram a última moda), Carlos pediu um drinque, um neo-cosmopolitan. Gostava de ver a bebida mudando de cor a cada vez que tomava um gole, do violeta até um intenso vermelho carmim.
Quando já estavam na segunda rodada, Carlos pôde ver, a poucas mesas de onde se encontravam, William conversando com outro rapaz. Estavam somente os dois.
Carlos, já um pouco alto pela bebida, ficou observando-os, o coração querendo sair pela boca. O medo misturava-se ao ciúme. Por que William não falara nada sobre aquilo?
William percebeu o olhar. E gélido, virou-se para o rapaz e conversou algo em seu ouvido. William apertou um botão na mesa, e uma tela subiu de um nicho de dentro dela. Ele tirou seu smartphone do bolso, e pagou a conta.  Os dois se levantaram.
O bar estava bastante lotado, de forma que William e o rapaz foram obrigados a passar ao lado da mesa de Carlos. Não olharam para ele, nem falaram nada. E saíram.
Após retornar do bar, Carlos andava de um lado para outro no apartamento, pensando no que acabara de presenciar. De repente, começou a sentir uma coceira nos olhos.
As lentes!
Esquecera-se de retirá-las desde o dia anterior. E elas estavam cobrando o preço. Rapidamente foi ao banheiro, onde tirou as lentes e os fones, e jogou-os juntos no frasco com solução antimicrobiana. Em uma hora já estariam perfeitamente esterilizados.
Não gostava muito do indutor de sono, mas àquela altura... Sempre tivera um pouco de insônia, e apesar de não gostar dos efeitos colaterais do indutor - a boca seca e um certo mal-estar - não pretendia encarar o sábado inteiro sonolento, sem curtir nada.
No dia seguinte, no sábado, aquele idiota iria ver. Uma nova boate iria abrir aquela noite com uma grande festa, um lugar perfeito para Carlos descolar alguém e tentar esquecer o “senhor pedra de gelo”.
Que cara de pau! Há quanto tempo será que aqueles dois já estavam se encontrando? William estava fazendo aquilo debaixo do nariz de Carlos, o tempo todo? E a noite que passara junto com William? Por que William o havia procurado? Era uma forma de humilhá-lo ainda mais?
Mas Carlos não conseguia mais pensar naquilo. O indutor de sono começou a fazer seu efeito, e os pensamentos de Carlos misturavam-se confusamente, terminando por fim em uma escuridão imediata, numa espécie de blecaute.
De repente, Carlos abriu os olhos. O sol já entrava pela janela. Apesar do corpo descansado, sentiu a boca seca, e um enjoo no estômago.
Correu até o banheiro, onde um jato de vômito saiu de sua boca assim que abriu a tampa do vaso.
Tomou um banho quente, e saiu de lá renovado, sem sentir mais nenhum enjoo. Apesar do efeito inicial nefasto após acordar, até que aquele aparelho tinha lá suas qualidades.
Por falar em aparelho, lembrou-se das lentes. Tirou-as da solução antimicrobiana, e colocou-as nos olhos.
Assim que recolocou também os fones, o menu virtual abriu-se à sua frente. Tinha uma nova mensagem de vídeo gravada.
Era William.
“Oi, amor. Fiquei envergonhado ontem. Por isso não falei contigo. Devia ter contado do meu amigo que chegou a Brasília, mas foi tudo tão de última hora... Queria apresentar ele depois para você. Vamos nos encontrar?”
Após o fim da mensagem, Carlos fez uma videochamada imediatamente, pelas lentes mesmo. William atendeu.
- Oi, amor. – disse William, despreocupadamente.
- Sem essa. O que é que tá rolando?
- Rolando? Nada. Eu tô passeando com o meu amigo. Ele gostaria muito de te conhecer.
O rapaz do dia anterior entrou no campo de visão virtual de Carlos.
- Esse é o Valmir. Diga “oi” pro Carlos.
- Oi, tudo bom, cara? O William só me tem falado coisas boas de você.
- Oi. – grunhiu Carlos.
- Então. – continuou William – O Valmir vai agora visitar os pais dele. Vamos nos encontrar para almoçar?
- Tá bom. Mas eu quero entender melhor essa história.
- Hum... Ciúmes, é?
- O que você acha?
- Te amo, bobo. – e William deu aquele sorrisinho sexy de lado.
- Também te amo, boboca.
Carlos fez um movimento com as mãos, e encerrou a chamada. O William ia ter que explicar direitinho aquilo.
Mas quando se encontraram no bar, o abraço quente e apertado de William desfez qualquer dúvida na cabeça de Carlos.
O bar estava vazio, era cedo ainda. Os garçons-robôs trouxeram duas cervejas Mao para a mesa deles. Brindaram. E passaram a tarde conversando, comendo e bebendo animadamente.
Mas quando Carlos viu a conta na tela da mesa, percebeu que só haviam cobrado metade do que haviam consumido, incluindo o almoço. Carlos mostrou para William, que deu apenas uma piscadinha safada. Carlos pagou, e William puxou-o pelo braço para saírem do restaurante, antes que alguém notasse a diferença.
O prédio de Carlos era ali perto, e foram até lá caminhando. William continuava rindo do episódio. Era o sarcástico de sempre. Ele era todo perfeitinho, mas também sabia ser moleque quando queria. É, William não havia mudado nada.
O resto da tarde foi aproveitado entre lençóis. William estava mais inspirado do que nunca. E após um cochilo, tomaram banho juntos. A noite prometia.
Foram à inauguração da boate nova. Muita gente bonita. Naquela época, já mais ninguém rotulava as pessoas como “heteros” e “gays”, e alguns casais, com várias combinações entre os sexos, podiam ser vistos na fila.
William e Carlos estavam dançando bem soltinhos, de vez quando rolava um beijo.
- Baby, acho que vou no banheiro. – disse William uma hora.
- Mas, gato, a gente nem bebeu ainda.
- Esqueci de fazer xixi na sua casa. Tô com a bexiga estourando. Volto logo. – e acrescentou – por que você não aproveita e pega uma cerveja pra gente?
Dando de ombros, Carlos foi até o balcão. Chegando lá, de repente,  com o canto do olho, viu algo que o surpreendeu.
Não era o William agarrado com aquele tal de Valmir? Num beijo daqueles!
Carlos foi na mesma hora na direção dos dois, e separou-os com violência.
- Que pouca vergonha é essa?
- Ih, que é, Carlos? Tá louco? – respondeu William.
- Você é um cara-dura, mesmo, né? Caí direitinho na tua conversa. Escroto!
- Ô, mais respeito com ele! – reclamou o tal Valmir.
- Que é, ô, Valmir? Fica na tua!
- Que Valmir, o caralho! Pirou, cara? Eu me chamo Gustavo!
- Carlos, que decadência. Não esperava isso de você.
- Cala a boca, William!
- Gustavo, vambora?
E os dois se afastaram, deixando Carlos enfurecido.
Ele imediatamente saiu da boate. Em casa, tirou as lentes e os fones. Tirou sua  roupa, e deitou-se. Não sem antes, com certa relutância, ligar novamente o indutor de sono. E a raiva deu lugar às lágrimas. Que por fim, deram lugar ao sono. E ao blecaute típico do indutor.
No domingo, Carlos passou o dia deitado no sofá, assistindo a seus programas favoritos, tentando distrair-se. Mas entre um programa e outro, a visão de William vinha intermitente em sua mente. Do beijo de William naquele estranho. O mesmo beijo que devia pertencer a ele, Carlos.
Na segunda, Carlos percebeu que havia dormido no sofá, à luz da TV ainda ligada. E apressou-se: tinha consulta com seu oftalmologista, para examinar as lentes. Colocou as lentes e os fones, e correu até a clínica.
No consultório, o médico fez alguns exames, e retirou as lentes para olhar sob um microscópio. Parecia preocupado.
- Aconteceu algo, doutor?
- Me diga... Você andou usando essas lentes antes de vir para cá?
- Hum... Pôxa, doutor, eu sei que o senhor disse para não usar antes de vir ver o senhor...
- Eu te disse que seria necessário fazer alguns ajustes na sua lente antes de você usar. Mas agora já foi. Viu algo anormal esses dias, enquanto usava as lentes?
- Não.
- Nada mesmo? Nada desagradável? Algum acontecimento inesperado? - o tom do médico era de preocupação.
- O máximo que me aconteceu foi pegar meu namorado com outro cara. Mas isso não tem nada a ver com as lentes.
Mas o doutor pareceu ainda mais interessado.
- Como isso aconteceu?
- Bom, eu fui com ele a uma boate. Ele me disse que ia ao banheiro, mas quando fui pegar umas cervejas, dei de cara com ele beijando outro. Bem na minha frente. Mas o que isso tem a ver...
- Hum... Que roupa ele estava usando?
- Bom, ele estava... Espera. Quando ele saiu comigo ele estava com uma camisa branca e uma calça jeans, e um tênis amarelo.
- E?
- Que estranho! Eu tava com tanta raiva... Mas quando eu peguei ele com o outro cara, ele estava com uma jaqueta escura, e uma camisa vermelha. E acho que tava usando um coturno preto.
- Nada anormal, né?... – ironizou o médico.
- Não sei... Que esquisito. Na hora não reparei. Mas agora...
- Quero te mostrar uma coisa.
E o oftalmologista ligou uma imagem holográfica à frente de Carlos.
A imagem mostrava o circuito eletro-quântico dentro da lente. O doutor começou a fazer um pequeno zoom, mostrando cada vez mais detalhes da complexidade daquela maravilha nanométrica.
Por fim, estacionou a imagem. E apontou para Carlos uma pequena parte avermelhada do circuito.
- Está vendo ali?
- Sim. O que é?
- Uma pequena interferência no projeto da sua lente. Na parte quântica que recepciona suas ondas cerebrais.
- Ondas cerebrais? Eu pensei que a lente funcionasse com o movimento das mãos e dos olhos...
- Não exatamente. Só o movimento não daria a precisão necessária. Na verdade, as lentes funcionam com a sua intenção de mover as mãos. Elas leem as ondas cerebrais referentes a esses movimentos. Por isso funcionam tão bem.
- E o que tem a ver as roupas do meu namorado com isso?
- Será que você estava mesmo com o seu namorado?
Carlos sentiu um embrulho no estômago. O que ele queria dizer com aquilo?
- Claro que sim!
- Escuta, esse seu “namorado”, como ele tem agido com você?
- Bom, ele parece um louco. Uma hora ele diz que me ama, outra hora briga comigo.
- E desde quando ele tem agido assim com você?
- Desde que fomos ao cinema 4D.
- Eu já imaginava algo assim. Você por acaso leu a bula que veio junto com a lente?
- Bula? A vendedora não me falou de nenhuma bula.
- A vendedora não sabe como a lente funciona. Por isso pedi para você não usar a lente antes de vir aqui. Eu teria alertado. Vou mostrar pra você.
A imagem do circuito desapareceu, dando lugar à típica tela virtual da lente, com um menu de opções. Em uma das opções, estava escrito “bula”.
O doutor escolheu aquela opção, e imediatamente um texto apareceu. A tela rolou para baixo, enquanto aparecia a descrição da lente, contraindicações... Por fim, uma parte do texto descrevia:
“Não deve ser usado por pessoas em tratamento de Alzheimer, esquizofrenia, comportamento borderliner ou esquizoide. Não usar em salas de cinema 4D ou concomitantemente com indutores de sono ou emoções.”
- Você por acaso usou um indutor de sono estes dias, usando as lentes?
- Não... Só estive no cinema 4D. Por quê?
- Você deu sorte. Esses indutores de sensação, de sono, de emoções... Uma bela porcaria! Ninguém devia mexer com as ondas elétricas naturais do cérebro.
- Mas o que está acontecendo?
- Carlos, você está vendo o que seu cérebro quer que você veja! Às vezes fantasiamos... Dormimos acordados. Criando ilusões em cima daquilo que mais desejamos. Só que as ondas neurais criadas pelo seu cérebro quando você vê algo e quando você apenas imagina algo são idênticas! Obviamente, o circuito das lentes é preparado para identificar apenas as ondas neurais referentes aos seus movimentos. Dessa forma, você tem controle completo sobre elas. Mas um indutor de ondas pode sobrecarregar o circuito.
- Mas eu toquei ele! Era real!
- Se você realmente acredita que algo é real... Seu cérebro vai fazer de tudo para confirmar isso, criando ilusões de tato, cheiro, paladar...
O doutor apagou a imagem holográfica, e retirou as lentes do microscópio, colocando-as em um frasco com solução, e deixando-a na mão de Carlos.
- Já consertei o circuito com problema. Só não use de novo quando indutores estiverem por perto.
- Muito obrigado, doutor.
- Que bom que você só usou isso no cinema. Se tivesse usado as lentes com um indutor de sono, estaria vendo até agora todas as imagens de seus sonhos... E estaria irremediavelmente psicótico.
Enquanto se despediam, o médico deu mais um conselho a Carlos:
- Eu, se fosse você, procurava esse seu namorado esses dias.
- Por quê?
- Para saber quem é o seu namorado verdadeiro. O que diz que te ama, ou o que está brigado com você.
Na saída do prédio da clínica, Carlos viu William saindo apressado do mesmo edifício. Será que ele havia comprado as lentes também? Mas não teve coragem de chamá-lo. Não queria saber a verdade, se William ainda o desejava ou não.
De lá, Carlos foi para o trabalho. Tentou concentrar-se no serviço. Para que não ficasse tentado a ligar para William, desligou seu relógio-smartphone, e colocou-o no bolso. Não tinha coragem de ligar. Será que tudo de bom que havia acontecido entre ele e William era apenas ilusão?
 Por isso, quando chegou em casa, Carlos sentiu-se aliviado quando viu que havia um recado de William na TV holográfica.
“Carlos, eu tentei te ligar o dia todo. Por que você não me atende? Aconteceu alguma coisa?”
Imediatamente Carlos ligou de volta para William, já feliz. Então ele realmente o amava.
William atendeu.
- Oi, Carlos! Eu tentei te ligar. Aconteceu alguma coisa com o seu smartphone?
- Não... Apenas eu precisava me concentrar no serviço, só isso. Mas agora está tudo bem.
- Bom, o que aconteceu na boate aquele dia? Pensei que a gente já havia conversado...
- Me desculpa. Eu... eu passei mal aquele dia. Não consegui te avisar.
 - Mas está tudo bem agora?
- Tá! Tá tudo ótimo! Quando a gente pode se ver outra vez?
- Como assim? Carlos, a gente não namora mais, esqueceu?
Carlos sentiu que suas mãos começavam a suar frio.
- Eu não entendi porque você agiu daquela maneira na boate – continuou William – Sei que a gente acabou de se separar, mas o Gustavo... A gente tá só se conhecendo. Não está acontecendo nada mais. Rolou aquele dia... Mas a gente nem tá mais junto.
- Sei... – Carlos não sabia o que dizer.
- Eu ainda me preocupo com você, Carlos.
- Não, não se preocupe. Está tudo bem.
- Mesmo?
- Tá, tá tudo ótimo.
E Carlos desligou a TV.
Durante vários dias, Carlos permaneceu pensando sobre tudo aquilo. Sentia-se derrotado. Não só pelo fora de William, mas por não imaginar o quanto ainda estava ligado a ele. William fora inteligente, continuara sua vida. Mas Carlos não. Era um defeito daquelas lentes, mas o defeito maior estava dentro dele. Por que se entregara tanto assim?
Carlos começou a sair novamente, e a evitar William. Cada vez que o via, sentia a respiração ofegante, o coração batendo mais forte, e uma vontade imensa de aproximar-se. 
Ao mesmo tempo, via William procurá-lo. Quando William o encontrava nas boates, olhava para ele convidativo, com aquele mesmo sorriso, misturado a uma certa tristeza. William era orgulhoso demais para aproximar-se. Como sempre, esperava que Carlos desse o primeiro passo.
Mas não era o que Carlos queria. William podia não saber de nada, mas Carlos sentia-se humilhado demais pela estranha experiência por que passara, e tudo que queria era livrar-se daquele amor que não o deixava mais dormir.
Pois com medo do que falara a ele o oftalmologista, Carlos começou a evitar o indutor de sono, mesmo sem usar as lentes. Ainda que isso lhe custasse um dia sonolento no trabalho.
A última vez que viu William, ele estava saindo de um cinema 4D. Sozinho.
Um dia, enquanto estava com alguns amigos em um restaurante, Carlos viu William sentado em uma mesa, somente ele, e mais ninguém.
William parecia conversar com alguém, e sorria. Carlos, tentando entender o que acontecia, pediu a um amigo na mesa para passar perto de William, e tentar ouvir alguma coisa.
- Mas você não queria esquecer esse cara?
- Eu quero. Mas me faz esse favor? Só te peço isso.
Então o amigo de Carlos passou perto de William, indo em direção ao banheiro. Estacionou alguns segundos ao lado de William, sem que esse o observasse, e depois seguiu seu caminho.
Na volta, conversou com Carlos.
- O que ele está dizendo?
- Acho que o William pirou de vez. Ele está dizendo seu nome.
- Como assim? O que ele disse exatamente?
- Algo assim: “Que bom que você está aqui do meu lado, Carlos. Você finalmente era tudo aquilo que eu esperava.”
Carlos ficou mudo com a resposta. Voltou a conversar com todos na mesa, tentando disfarçar sua angústia. Mas em um determinado momento olhou para William. E viu nos olhos deles uma ternura e um amor profundo, mirando para o vazio.
Em casa, já alto pelo álcool, Carlos olhou-se no espelho do banheiro.
Lembrou-se de William saindo do edifício da clínica de oftalmologia. Sabia que ele também queria comprar aquelas lentes. E vira ele sair de um daqueles cinemas 4D. Aquele comportamento estranho de William no bar... Uma coisa levava a outra.
 Sentia-se mais uma vez derrotado. Como Kasparov após perder no xadrez para o Deep Blue.* Fora derrotado por uma máquina, por uma ilusão eletrônica.
Os pensamentos se repetiam na cabeça de Carlos:
“Você vive dizendo que vai melhorar. Eu acreditei. Mas parece que sempre falta algo.”
“Falta algo pra quê?”
“ Pra você ser a pessoa que eu sempre quis.”
Carlos abriu o armário do banheiro. E retirou dali o frasco com as lentes e os fones. Colocou-os nos olhos e ouvidos.
Foi ver um filme 4D, de madrugada. O mesmo que vira naquele dia com William.
E de volta pra sua casa, ainda com as lentes e os fones, ligou o indutor de sono, e deitou-se na cama.
De repente, sentiu alguém passar carinhosamente a mão pelos seus cabelos.
- Carlos, meu amor...
Virou-se na cama, e viu William deitado ao seu lado. Lindo, perfeito, como sempre o imaginara.
E beijaram-se apaixonados, como se fosse a primeira vez. PNC!


*Em maio de 1997, Garry Kasparov, então o maior campeão de xadrez do mundo, natural do Azerbaijão, foi derrotado em um confronto de seis partidas pelo computador Deep Blue, produzido pela IBM. Foi a primeira vez na história que uma máquina derrotou um ser humano em um confronto de xadrez. (Nota do Autor)


"Sai pra lá, amor bandido! Será que eu namoraria alguém que está só na minha imaginação? Sei não..."


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