Comecei após o último gole de café na xícara, naquela manhã. Peguei primeiro as roupas que já não mais usava. E também as que nunca usaria. Aquelas rasgadas, ou com botões faltando. Também as mais caras, resultado de um impulso de consumo. E que já não combinavam com as outras roupas, nem comigo.
Doei-as todas ao porteiro do
prédio. Com elas vestiria a si mesmo, porteiro, e também aos seus irmãos e os cunhados.
Quando retornei ao meu
apartamento, não me senti bem com as poucas roupas que sobraram. Tudo muito
básico. Algumas camisas sem estampa de várias cores, uma calça, uma bermuda
para o eventual calor, um par de meias e um par de sapatos. Também as deixei
com o porteiro, e fiquei só com a roupa do corpo.
Depois foram os livros.
Organizados em duas vastas prateleiras na sala, como uma pequena biblioteca,
para impressionar os amigos. Aqueles ainda não lidos, tirei-os fácil dali.
Lembrei de algumas revistas velhas no
quarto, notícias antigas, tão importantes em seus dias, e logo esquecidas. E em
sua obsolescência fáceis de descartar.
Os livros de estudo retirei um
por um. Nunca folheados, sombra de uma expectativa de trabalho que se
conseguiria com árdua leitura e muitas aulas. Promessa de algum dinheiro
e prestígio social.
Sobre a pilha já formada no chão
coloquei os livros preferidos. Estes foram difíceis, sempre tão relidos, assim
como os de infância, onde criei as esperanças de ao menos uma vez ser o herói
da minha própria história.
E de uma vez só, acabei com o passado e o futuro a mim escritos por
pessoas que sequer conheci.
Por fim cheguei às fotos, às
cartas e aos diários. Sim, ainda haviam restado as cartas, lembrança de uma
época em que a tinta das canetas e dos sentimentos ainda não havia secado,
substituída pela vaidade de lustrar teclados de celular.
Nelas via a história, não a que
outros haviam escrito para mim, mas a história que eu mesmo escrevi, sem maior
treino ou habilidade. Também não era a que havia escrito para os outros, nos relatórios de
um escritório, nas conversar do dia-a-dia, com sorrisos forçados, palavras
bonitas e frases de efeito. Não, aquele era o registro de minha vida
acontecendo, a qual me encarava, sem que a ela pudesse mentir. Aquelas imagens
e palavras revelavam não só os prazeres sinceramente sentidos, pois afinal eu acreditava
ser uma boa pessoa, um bom moço, amigo, filho, irmão, pai, e tudo o mais e
essas coisas. Mas também todos os outros sentimentos não prazerosos envolvidos
em uma foto linda na praia, de um amor que foi e já não existe. Da criança que
um dia era, e agora se tornara apenas sonho. Dos amigos do colégio, dos quais
não se sabia o paradeiro, e muitos nem o nome.
Descartei-os todos.
Os poucos móveis da sala, os
quadros na parede. Em alguns dias estava tudo vazio. Restaram as paredes
brancas, com algumas manchas, e alguns pregos fazendo sombra.
Retirei a roupa que me restava,
esquentei a água, e fui tomar um banho.
Lá mesmo me livrei de minha pele,
sem cerimônia. Minha barreira contra os ventos, a chuva, a luz dura e quente que
arde no verão. A pele que me protegia, me envolvia, me dava forma, e me
separava de tudo, ao mesmo tempo em que me dava um corpo uno. Que me dava um
interior e um exterior que se repeliam como a noite e o dia.
Fui deitar-me no chão do quarto,
com o sangue formando poças no caminho enquanto dava passos para fora do box do
chuveiro. E deitado, relaxei.
Enfim retirei o meu sexo. Não mais orgulho de um órgão que se infla por
si mesmo. Nada a dizer-me que era homem, protetor ou agressivo. Nem o
contrário, homem novo, preocupado em dizer-me igual à metade feminina da
humanidade, querendo em minha zelosa e complacente patriarcalidade privilegiada
conceder as mesmas oportunidades e refugiar-me em minhas falsas obrigações
masculinas, impossibilitado pela biologia de conhecer as reais necessidades das
mulheres.
E decidido, arranquei-o rápido. Não mais homem, nem mulher.
Desfiz-me do sistema
digestivo, nada mais de sentimentos intestinos, de cólicas ou borboletas no
estômago. Retirei com calma a válvula do ânus, nada havia mais a segurar, de diarreias
inevitáveis a sentimentos escondidos, ou mesmo prazeres proibitivos, sempre
negados.
O coração, tirei-o do peito com
calma. Ah, o coração. O que ainda restaria entre aquelas veias coronárias? O
coração era infindável. Levei horas separando-o, as veias e artérias saindo do
coração e envolvendo tudo o que restava do corpo, do sexo que já separara, até
os pulmões, as mãos, os pés e o cérebro.
Os pés foram mais tranquilos.
Não tinham mais estradas para percorrer.
Os pulmões suspiraram uma última
vez. Talvez de saudade. Mas do quê? Mas não contestei nem tive pena, e me
despedi deles mesmo assim.
O cérebro pensei que fosse ser
complicado, mas quando senti aquela massa gelatinosa, percebi que era fácil me
livrar dele. Tantos anos para amadurecer, tantas palavras ouvidas, gostos
rejeitados, sabores aprazíveis, perfumes e fedores, visões magníficas e pobres.
Tantos anos de registro, desfeitos de uma só vez.
Os órgãos que sobraram, sem
coração, pulmão ou cérebro, ou mesmo pés para conduzi-los, tornaram-se ocos e
sem vida, e foram tirados sem esforço. Quase se destacavam sozinhos, fossem os
olhos, as orelhas e o ouvido interno, os lábios, a língua e o nariz.
Terminado o trabalho, joguei as
mãos para um canto, dando-me por satisfeito.
Mas logo percebi que ainda havia algo.
Continuava me sentindo entulhado.
Logo dei por conta, e peguei
minha alma. Lavei e passei a ferro. Esfreguei as manchas de bondade, de
tristezas, alegrias, ciúmes, vaidades e maldade. E joguei ao primeiro mendigo
que passou por debaixo da janela, feliz com uma alma quase como nova e
renovada.
Desci as escadas, e fui sentar-me
ao sol, no asfalto.
Quanta liberdade! Sem pele para
o sol queimar, sem pulmões para ficar ofegante, até mesmo sem nádegas que se
queimassem ao contato do chão. Sem coração para duvidar, cérebro questionando ou alma a ser salva.
E sem olhos para cegar, olhei
direta e demoradamente ao sol pela primeira vez.
Fiquei o resto do dia olhando
para ele.
Vi um por do sol como nunca
antes. Um por do sol sem retinas. Sem ver. Luz e cores sem reflexão na carne,
sem conduto nervoso, sem cérebro para codificar. As luzes e cores apenas ali
estavam. Todas as existentes e possíveis. Um por do sol por uma única vez como
é, por inteiro.
E quando chegou a noite, ainda
me sentia inquieto.
E lembrei-me de libertar-me da
mente.
Tinha tempo, e fui aos poucos.
Nunca tinha me acostumado muito com ela, podia ser perigoso. Separei primeiro
as memórias, e soprei-as para longe. Depois as emoções, e fui despetalando
devagar uma a uma. Sobrou a razão, e vi que não havia razão alguma. E ela
evaporou no ar.
No fim sobrou só minha
identidade. Primeiro o meu nome, que se desfez como
areia ao ser analizado com mais atenção.
Fiquei só com o meu eu.
E antes que esse eu se dissolvesse entre o céu e as nuvens, a terra e os
pedregulhos, ainda tive tempo de ver as estrelas mais distantes, e atrás delas
todo o universo. Não havia peso, não havia distâncias, nem fim nem começo. Não
havia nada. Mas havia tudo.
E eu era, se um “eu” ainda havia, tudo que fora e seria, tudo que existe
e existirá.
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