Pirei no Conto

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terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O Gato













Deixo a porta de casa aberta no fim de tarde. O vento entra pela janela e sai por essa mesma porta, me aliviando do calor.
                E pela porta entra um gato. De quem é o gato? De onde ele veio? Virá de outro andar, escapado por uma fresta, à revelia e distração de seu dono?
                Mas ele nada diz. Apenas me olha. Com olhos felinos.
                Bebo mais uma vez de minha xícara de chá, sem pensar nele. O dono dará por sua falta, e virá a ele buscar, sem que eu necessite fazer qualquer esforço.
                E olho mais uma vez para o gato, que me devolve o olhar.
                Olho por dentro daqueles olhos. Aqueles olhos de gato.
                E percebo, neste fim de tarde, em que o sol ainda não se esconde, a luz dura e forte de Brasília refletindo na parede:
                O gato é o mundo.
                Me olha com olhos do mundo. Me observa com olhos do mundo. Me vê. Como a mim o mundo veria.
                Olho em seus olhos, com meu olhar ainda mais profundo.
                E o gato a mim se revela:
                O gato sou eu.
                E a mim vê ele, como a mim mesmo vejo a mim.
                Vejo olhando em seus olhos.
                Meus olhos, que a mim me olham, sem me temer.
                Me olho me olhando.
                Me vejo vendo.
                Me observo me observando.
                Mas o que há para ver?
                Sem perguntas ou respostas.
                            Sem pressa ou distração.
                            Eu a ele vejo, ele vê a mim e nos vemos.
                            E a mim, e ao mundo, e ao gato. Sem objeto, sem sujeito.
                            Apenas ver.
                  Lá fora, as crianças correm, os carros correm, as motocicletas correm. Os homens, apressados, continuam caminhando.
                           Tão ordinário olhar de mundo, de mim, de gato.
                           Mas deste momento de fato, sem futuro, sem passado, sem prólogo, sem final, nem ato:
                           - Não, não vou me esquecer.

Enquanto tomo de meu chá mais um gole, nesta tarde em que abri a porta, para deixar da janela o vento correr.

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