Pirei no Conto

Pirei no Conto

quarta-feira, 23 de março de 2016

Amor Líquido

Artur olhou novamente seu smartphone para ver se o rapaz havia visto sua mensagem.
Os dois risquinhos se pintaram de verde.
Olhou mais acima na tela. Ele, o rapaz, estava online.
Este do outro lado da linha começou a escrever. Expectativa.
“Obrigado. Eu sei que eu preciso me acalmar. Nem dormi à noite pensando nisso.”
O rapaz começou a escrever de novo.
“Estou na Asa Sul. Vamos almoçar hoje?”
Combinaram de se encontrar no Conjunto Nacional.
Trânsito. Artur não queria chegar atrasado.
Ficou na frente da loja da Polyélle. Será que estava no lugar errado?
Um braço o puxou:
- Oi.
Ele era menos bonito do que nas fotos. Mas ainda assim muito atraente. Alto, como já sabia.
Subiram a escada rolante, em direção à praça de alimentação. O jovem agradeceu Artur novamente: estava desde o dia anterior tentando encaixar seus horários da faculdade para fazer a matrícula do novo semestre. Artur o ajudou a acalmar-se.
Foram a um restaurante por quilo. Sentaram-se juntos. A conversa fluiu. O sorriso dele era lindo.
Uma semana antes, Artur achara o nome estranho quando viu Péricles, o rapaz que agora encontrava, pela primeira vez no tinder. Achou que não tinha nenhuma chance com aquele rapaz com cara demodelo. Ainda tinham quase vinte anos de diferença.  Mas tentou a sorte. Match.
Aquela apresentação básica. Onde você nasceu, onde mora, o que estuda, com o que trabalha.
Após a introdução inicial, uma breve conversa, alguns gostos, música, filmes. Trocaram o número do whatsapp.
Artur declamava poemas de Fernando Pessoa. A voz grossa encantou Péricles. Se surpreendeu com alguém que não falava imediatamente em sexo. Que dizia poesias e ainda o apoiava. Que sensível.
Ali mesmo no Conjunto Nacional já marcaram de se encontrar na sexta.
Artur não tinha com quem falar sobre seu entusiasmo. Retornara há pouco mais de dois anos a Brasília, depois de quinze anos fora, em um casamento falido. A única amiga que mantivera já estava casada. Os pais moravam na cidade, mas nunca havia dito nada a eles a razão do divórcio. Mas eles também já não perguntavam mais sobre quando arranjaria uma namorada.
A ex-esposa morava em outro estado. E não conversavam.
Artur demorou pra sair do seu apartamento na Asa Sul e chegar até Taguatinga. É curioso como todo mundo que mora em outra cidade do DF sabe dirigir no Plano Piloto, mas o contrário raramente se dá.  Péricles partilhou sua localização. Mesmo assim, pra ele era tudo tão confuso que Artur teve que perguntar na rua onde ficava o comércio em que iam se encontrar.
Péricles entrou no carro. Para onde iam? Artur não havia pensado nisso, tão eufórico estava. Não namorava há tanto tempo que nem recordava desses detalhes.
É bom lembrar que Artur não era um desses rapazes de vinte anos, brancos, malhados, bem tratados e lindos. Aqueles que fazem as mulheres héteros se perguntarem por que todo gay é bonito. Não. A vida de Artur era o lado “B” da vida gay, mesmo que recente. Aquele em que se é mais velho, em que não se é branco, em que não se é bonito, em que o corpo não é uma escultura grega cinzelada em academias.
Artur percebeu logo que era o gay “feio”. Aquele para quem costumavam dizer “você não é meu tipo”. A quem não respondiam as mensagens.  Aquele a quem viravam a cara na boate sob o menor sinal de flerte.
E divorciado há pouco mais de dois anos de um casamento com uma mulher, ainda se sentia inexperiente no meio gay.
Uma vez alguém ficou com ele e disse: “tudo bem, eu não ligo pra barriga”. Artur fingiu não perceber.
Ele não era um carente. Quem está na chuva é pra se molhar, não é verdade? Sabia que não era um galã de novela. Mas tinha seu público, certamente.
Já havia ficado com tanto cara bonito. Até lindo. Mas era triste, depois da gozada, entrar no chuveiro após a vez dele, e despedir-se rapidamente de alguém lacônico que mal o olhava na cara.
Artur também percebeu que não conseguia ficar com outros gays “feios”. Isso era o mais incômodo. Eles, como qualquer pessoa, também tinham o seu próprio “tipo”, ao qual se sentiam atraídos. Mas em geral, coincidentemente, era o mesmo tipo de todos os outros. Em que o termômetro da beleza e juventude eram decisivos.
Mas desta vez Artur encontrara alguém diferente.
Conversavam na estrada enquanto iam em direção ao Plano Piloto.
Péricles ficava mais calado, mas uma hora perguntou:
- Você ficou com alguém durante a semana?
- Não, não fiquei com ninguém.
- Tá.
Sem ter planejado o encontro de antemão, Artur sugeriu irem ao Beirute da Asa Sul.
- Ah, não. Lá só tem velho.
Artur pensou para si mesmo: “Eu sou velho”.
Era o único bar gay, ou quase, que conhecia na cidade. Lembrou do Simpson’s. Tinha gente gay que ia lá, né? - pensou.
- Não conheço.
Chegaram ao Simpson’s. Assim que entrou, Artur sentiu que não ia dar pé. Não tinha clima. Tava muito hétero.
Sentaram-se, tomaram uma cerveja. Só tinha Antárctica.
- Eu acho aguada.
- Sério?... Eu gosto.
- Não, mas tudo bem.
Só vinha em long neck. Péricles não conseguiu tomar uma inteira.
- Vamos indo?
- Sim, vamos pra Vic.
“Vic” era a boate Victoria. Quase sempre aberta de quinta a sexta, era a opção quase certa dos gays quando não tinha festa na cidade.
Quando entraram no carro Péricles perguntou de novo:
- Você não ficou com ninguém essa semana?
Já meio alto, Artur confessou em tom ameno:
- Ah, teve um cara que foi pra minha casa. Mas não aconteceu nada.
- Eu fiquei com um cara no sábado.
Artur demorou um pouco a responder:
- Tudo bem. A gente não tinha nada. Tava se conhecendo.
- Tá. Mas independente do que acontecer hoje, a gente continua amigo?
- Sim, claro.
- Tá.
Artur quase enfiou o carro em um buraco no caminho pra Vic.
- Se você estourar um pneu, eu vou pegar um táxi e vou te deixar aqui, viu?
Artur deu risada e continuou conversando. Mas sentia que a afirmação de Péricles era, no meio da brincadeira, bem sincera.
A noite era open bar. Péricles pediu que Artur trouxesse cerveja pra ele.
Mas Péricles pegava a cerveja e ia dançar a um dois passos de Artur, olhando para o palco dos go-go boys.
Alguém chegou perto de Péricles, dançando atrás dele. Artur se interpôs entre os dois. O cara se afastou.
Mas Péricles continuava dançando sozinho, e continuava olhando pro palco. Artur se cansou. E foi para o bar tomar mais uma cerveja. Só.
Quando voltou do banheiro, assim que chegou ao balcão para tomar mais uma, Péricles aproximou-se dele.
- Onde você estava?
- Fui ao banheiro.
- Olha, tem um cara aqui que conhece minha vida inteira. Posso ficar com ele?
Artur se surpreendeu:
- Tá. Mas eu tô indo embora.
- Não, você ia me levar de volta!
Artur olhou sério para ele.
- Então eu não vou ficar com ele. Vou só conversar. É rápido. Você me espera aqui?
- Espero sim.
Artur esperou. Tomou uma cerveja e esperou mais um pouco. Vinte minutos. Foi dar uma volta.
Viu Péricles conversando com outro rapaz. Devia ser o cara com que ele pediu pra ficar. Não se beijavam. Mas o rapaz passava a mão no rosto de Péricles, os lábios próximos aos dele, insinuantes.
Artur se afastou. Sentou-se na escada. Sentia-se arrasado.
Uma lágrima desceu no seu rosto. Invisível no escuro da boate. Tentou disfarçar, secando-a com um dedo.
Mas outra lágrima já caía. E outra. E outra.
Cada lágrima lembrava um fora, o vazio depois do gozo, uma porta fechada depois de uma transa sem sentido, uma mensagem nunca respondida.
Tinha se assumido gay para si mesmo, se separado, ficado longe dos filhos, trocado de emprego. Tudo para ser ele mesmo. Tudo para ele ser feliz. E estava completamente sozinho.
Alguém se aproximou:
- Você tá bem?
- Não, não é nada.
Mas Artur já chorava copiosamente, aos soluços.
De repente ouviu a voz preocupada de Péricles:
- O que aconteceu? Você tá bem? Tá se sentindo mal?
- Vamos embora?
No carro Péricles não parava de falar:
“Tá tudo bem com você?”
“Por que você tá assim?”
“Vamos comer alguma coisa no Subway. Ótimo terminar a noite comendo alguma coisa. Você vai se sentir melhor.”
Em frente ao Subway, Artur desabou:
- Nunca consigo achar ninguém. Não tenho sequer um amigo.
E chorava como uma criança.
Não comeram nada. O resto da viagem foi em silêncio.
Em frente ao portão da casa de Péricles, este saiu do carro rapidamente:
- Obrigado pela carona. – disse seco.
No dia seguinte Artur mandou uma mensagem:
“Esperava que a gente tivesse um encontro. Você me deixa sozinho e vai ver outro cara. Não posso ficar com alguém assim. ”
A resposta de Péricles veio.
“Entendo.”
No dia seguinte Artur ficou imaginando, pensando. Por que tinha falado a ele que havia dormido com alguém? Era isso. A razão do comportamento estranho de Péricles. Sentiu-se culpado.
Escreveu no whatsapp:
“Me desculpe. Entendo você. Não devia ter dito nada sobre ter dormido com outro cara. Você ficou decepcionado comigo. Pensei que a gente ainda não tinha nada. Me desculpe.”
Os risquinhos ficaram verdes.
Mas não houve resposta.

2 comentários:

  1. Oi Felipe! Passei aqui para ler seus contos. Você escreve com muita delicadeza e sensibilidade. Adorei! Abraço.

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