Pirei no Conto

Pirei no Conto

quarta-feira, 23 de março de 2016

Amor Líquido

Artur olhou novamente seu smartphone para ver se o rapaz havia visto sua mensagem.
Os dois risquinhos se pintaram de verde.
Olhou mais acima na tela. Ele, o rapaz, estava online.
Este do outro lado da linha começou a escrever. Expectativa.
“Obrigado. Eu sei que eu preciso me acalmar. Nem dormi à noite pensando nisso.”
O rapaz começou a escrever de novo.
“Estou na Asa Sul. Vamos almoçar hoje?”
Combinaram de se encontrar no Conjunto Nacional.
Trânsito. Artur não queria chegar atrasado.
Ficou na frente da loja da Polyélle. Será que estava no lugar errado?
Um braço o puxou:
- Oi.
Ele era menos bonito do que nas fotos. Mas ainda assim muito atraente. Alto, como já sabia.
Subiram a escada rolante, em direção à praça de alimentação. O jovem agradeceu Artur novamente: estava desde o dia anterior tentando encaixar seus horários da faculdade para fazer a matrícula do novo semestre. Artur o ajudou a acalmar-se.
Foram a um restaurante por quilo. Sentaram-se juntos. A conversa fluiu. O sorriso dele era lindo.
Uma semana antes, Artur achara o nome estranho quando viu Péricles, o rapaz que agora encontrava, pela primeira vez no tinder. Achou que não tinha nenhuma chance com aquele rapaz com cara demodelo. Ainda tinham quase vinte anos de diferença.  Mas tentou a sorte. Match.
Aquela apresentação básica. Onde você nasceu, onde mora, o que estuda, com o que trabalha.
Após a introdução inicial, uma breve conversa, alguns gostos, música, filmes. Trocaram o número do whatsapp.
Artur declamava poemas de Fernando Pessoa. A voz grossa encantou Péricles. Se surpreendeu com alguém que não falava imediatamente em sexo. Que dizia poesias e ainda o apoiava. Que sensível.
Ali mesmo no Conjunto Nacional já marcaram de se encontrar na sexta.
Artur não tinha com quem falar sobre seu entusiasmo. Retornara há pouco mais de dois anos a Brasília, depois de quinze anos fora, em um casamento falido. A única amiga que mantivera já estava casada. Os pais moravam na cidade, mas nunca havia dito nada a eles a razão do divórcio. Mas eles também já não perguntavam mais sobre quando arranjaria uma namorada.
A ex-esposa morava em outro estado. E não conversavam.
Artur demorou pra sair do seu apartamento na Asa Sul e chegar até Taguatinga. É curioso como todo mundo que mora em outra cidade do DF sabe dirigir no Plano Piloto, mas o contrário raramente se dá.  Péricles partilhou sua localização. Mesmo assim, pra ele era tudo tão confuso que Artur teve que perguntar na rua onde ficava o comércio em que iam se encontrar.
Péricles entrou no carro. Para onde iam? Artur não havia pensado nisso, tão eufórico estava. Não namorava há tanto tempo que nem recordava desses detalhes.
É bom lembrar que Artur não era um desses rapazes de vinte anos, brancos, malhados, bem tratados e lindos. Aqueles que fazem as mulheres héteros se perguntarem por que todo gay é bonito. Não. A vida de Artur era o lado “B” da vida gay, mesmo que recente. Aquele em que se é mais velho, em que não se é branco, em que não se é bonito, em que o corpo não é uma escultura grega cinzelada em academias.
Artur percebeu logo que era o gay “feio”. Aquele para quem costumavam dizer “você não é meu tipo”. A quem não respondiam as mensagens.  Aquele a quem viravam a cara na boate sob o menor sinal de flerte.
E divorciado há pouco mais de dois anos de um casamento com uma mulher, ainda se sentia inexperiente no meio gay.
Uma vez alguém ficou com ele e disse: “tudo bem, eu não ligo pra barriga”. Artur fingiu não perceber.
Ele não era um carente. Quem está na chuva é pra se molhar, não é verdade? Sabia que não era um galã de novela. Mas tinha seu público, certamente.
Já havia ficado com tanto cara bonito. Até lindo. Mas era triste, depois da gozada, entrar no chuveiro após a vez dele, e despedir-se rapidamente de alguém lacônico que mal o olhava na cara.
Artur também percebeu que não conseguia ficar com outros gays “feios”. Isso era o mais incômodo. Eles, como qualquer pessoa, também tinham o seu próprio “tipo”, ao qual se sentiam atraídos. Mas em geral, coincidentemente, era o mesmo tipo de todos os outros. Em que o termômetro da beleza e juventude eram decisivos.
Mas desta vez Artur encontrara alguém diferente.
Conversavam na estrada enquanto iam em direção ao Plano Piloto.
Péricles ficava mais calado, mas uma hora perguntou:
- Você ficou com alguém durante a semana?
- Não, não fiquei com ninguém.
- Tá.
Sem ter planejado o encontro de antemão, Artur sugeriu irem ao Beirute da Asa Sul.
- Ah, não. Lá só tem velho.
Artur pensou para si mesmo: “Eu sou velho”.
Era o único bar gay, ou quase, que conhecia na cidade. Lembrou do Simpson’s. Tinha gente gay que ia lá, né? - pensou.
- Não conheço.
Chegaram ao Simpson’s. Assim que entrou, Artur sentiu que não ia dar pé. Não tinha clima. Tava muito hétero.
Sentaram-se, tomaram uma cerveja. Só tinha Antárctica.
- Eu acho aguada.
- Sério?... Eu gosto.
- Não, mas tudo bem.
Só vinha em long neck. Péricles não conseguiu tomar uma inteira.
- Vamos indo?
- Sim, vamos pra Vic.
“Vic” era a boate Victoria. Quase sempre aberta de quinta a sexta, era a opção quase certa dos gays quando não tinha festa na cidade.
Quando entraram no carro Péricles perguntou de novo:
- Você não ficou com ninguém essa semana?
Já meio alto, Artur confessou em tom ameno:
- Ah, teve um cara que foi pra minha casa. Mas não aconteceu nada.
- Eu fiquei com um cara no sábado.
Artur demorou um pouco a responder:
- Tudo bem. A gente não tinha nada. Tava se conhecendo.
- Tá. Mas independente do que acontecer hoje, a gente continua amigo?
- Sim, claro.
- Tá.
Artur quase enfiou o carro em um buraco no caminho pra Vic.
- Se você estourar um pneu, eu vou pegar um táxi e vou te deixar aqui, viu?
Artur deu risada e continuou conversando. Mas sentia que a afirmação de Péricles era, no meio da brincadeira, bem sincera.
A noite era open bar. Péricles pediu que Artur trouxesse cerveja pra ele.
Mas Péricles pegava a cerveja e ia dançar a um dois passos de Artur, olhando para o palco dos go-go boys.
Alguém chegou perto de Péricles, dançando atrás dele. Artur se interpôs entre os dois. O cara se afastou.
Mas Péricles continuava dançando sozinho, e continuava olhando pro palco. Artur se cansou. E foi para o bar tomar mais uma cerveja. Só.
Quando voltou do banheiro, assim que chegou ao balcão para tomar mais uma, Péricles aproximou-se dele.
- Onde você estava?
- Fui ao banheiro.
- Olha, tem um cara aqui que conhece minha vida inteira. Posso ficar com ele?
Artur se surpreendeu:
- Tá. Mas eu tô indo embora.
- Não, você ia me levar de volta!
Artur olhou sério para ele.
- Então eu não vou ficar com ele. Vou só conversar. É rápido. Você me espera aqui?
- Espero sim.
Artur esperou. Tomou uma cerveja e esperou mais um pouco. Vinte minutos. Foi dar uma volta.
Viu Péricles conversando com outro rapaz. Devia ser o cara com que ele pediu pra ficar. Não se beijavam. Mas o rapaz passava a mão no rosto de Péricles, os lábios próximos aos dele, insinuantes.
Artur se afastou. Sentou-se na escada. Sentia-se arrasado.
Uma lágrima desceu no seu rosto. Invisível no escuro da boate. Tentou disfarçar, secando-a com um dedo.
Mas outra lágrima já caía. E outra. E outra.
Cada lágrima lembrava um fora, o vazio depois do gozo, uma porta fechada depois de uma transa sem sentido, uma mensagem nunca respondida.
Tinha se assumido gay para si mesmo, se separado, ficado longe dos filhos, trocado de emprego. Tudo para ser ele mesmo. Tudo para ele ser feliz. E estava completamente sozinho.
Alguém se aproximou:
- Você tá bem?
- Não, não é nada.
Mas Artur já chorava copiosamente, aos soluços.
De repente ouviu a voz preocupada de Péricles:
- O que aconteceu? Você tá bem? Tá se sentindo mal?
- Vamos embora?
No carro Péricles não parava de falar:
“Tá tudo bem com você?”
“Por que você tá assim?”
“Vamos comer alguma coisa no Subway. Ótimo terminar a noite comendo alguma coisa. Você vai se sentir melhor.”
Em frente ao Subway, Artur desabou:
- Nunca consigo achar ninguém. Não tenho sequer um amigo.
E chorava como uma criança.
Não comeram nada. O resto da viagem foi em silêncio.
Em frente ao portão da casa de Péricles, este saiu do carro rapidamente:
- Obrigado pela carona. – disse seco.
No dia seguinte Artur mandou uma mensagem:
“Esperava que a gente tivesse um encontro. Você me deixa sozinho e vai ver outro cara. Não posso ficar com alguém assim. ”
A resposta de Péricles veio.
“Entendo.”
No dia seguinte Artur ficou imaginando, pensando. Por que tinha falado a ele que havia dormido com alguém? Era isso. A razão do comportamento estranho de Péricles. Sentiu-se culpado.
Escreveu no whatsapp:
“Me desculpe. Entendo você. Não devia ter dito nada sobre ter dormido com outro cara. Você ficou decepcionado comigo. Pensei que a gente ainda não tinha nada. Me desculpe.”
Os risquinhos ficaram verdes.
Mas não houve resposta.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

O Gato













Deixo a porta de casa aberta no fim de tarde. O vento entra pela janela e sai por essa mesma porta, me aliviando do calor.
                E pela porta entra um gato. De quem é o gato? De onde ele veio? Virá de outro andar, escapado por uma fresta, à revelia e distração de seu dono?
                Mas ele nada diz. Apenas me olha. Com olhos felinos.
                Bebo mais uma vez de minha xícara de chá, sem pensar nele. O dono dará por sua falta, e virá a ele buscar, sem que eu necessite fazer qualquer esforço.
                E olho mais uma vez para o gato, que me devolve o olhar.
                Olho por dentro daqueles olhos. Aqueles olhos de gato.
                E percebo, neste fim de tarde, em que o sol ainda não se esconde, a luz dura e forte de Brasília refletindo na parede:
                O gato é o mundo.
                Me olha com olhos do mundo. Me observa com olhos do mundo. Me vê. Como a mim o mundo veria.
                Olho em seus olhos, com meu olhar ainda mais profundo.
                E o gato a mim se revela:
                O gato sou eu.
                E a mim vê ele, como a mim mesmo vejo a mim.
                Vejo olhando em seus olhos.
                Meus olhos, que a mim me olham, sem me temer.
                Me olho me olhando.
                Me vejo vendo.
                Me observo me observando.
                Mas o que há para ver?
                Sem perguntas ou respostas.
                            Sem pressa ou distração.
                            Eu a ele vejo, ele vê a mim e nos vemos.
                            E a mim, e ao mundo, e ao gato. Sem objeto, sem sujeito.
                            Apenas ver.
                  Lá fora, as crianças correm, os carros correm, as motocicletas correm. Os homens, apressados, continuam caminhando.
                           Tão ordinário olhar de mundo, de mim, de gato.
                           Mas deste momento de fato, sem futuro, sem passado, sem prólogo, sem final, nem ato:
                           - Não, não vou me esquecer.

Enquanto tomo de meu chá mais um gole, nesta tarde em que abri a porta, para deixar da janela o vento correr.

domingo, 15 de novembro de 2015

Um Ano de Blog!!!



No finalzinho do ano passado começava a jornada de escrever um blog de contos... Muitas expectativas e muitas dúvidas: será que vai dar pé? Vai ter criatividade pra tocar tudo isso?

E quase um ano depois, só surpresas! Muitas pessoas vindo agradecer,curtir, elogiar!

Então preparamos essa surpresa, para facilitar a vida dos leitores!

Apresentamos todos os contos de uma só vez, à sua escolha, para reler os contos preferidos e conhecer alguns outros! É só clicar no nome do conto, e voilà!


Comédia

Amor nos Tempos do Iê-Iê-Iê

Valéria Paulette, a Coquete

A Bruxa da Vila Amaury

Licença para o Minuto do Comercial

Um Golinho de Vodca

A Onça

Quem Disse, Berenice?


Romântico

O Clube dos Corações Solitários

Um Presente de Natal

A Flor do Cerrado


Terror

A Herança


Ficção científica

O Amor de Narciso


Drama

O Nome do Jogo

A Flor Orvalhada da Manhã

A Maçã Dourada

O Balão Azul


Sociedade

Nega do Cabelo Mole

Na Calada da Noite

A Isca da Vaidade

A Carícia do Vento sobre as Águas

Os Burocratas


Outros

Após o Café

O Homem sem Imaginação


Crônicas

Doutor Strangelove, ou Como Aprendi a Amar a Coxinha e Fugi para Miami - Só Que Não

Uma História da Carochinha

A Intangibilidade do Encontro



sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Após o Café



Comecei após o último gole de café na xícara, naquela manhã. Peguei primeiro as roupas que já não mais usava. E também as que nunca usaria. Aquelas rasgadas, ou com botões faltando. Também as mais caras, resultado de um impulso de consumo. E que já não combinavam com as outras roupas, nem comigo.
                Doei-as todas ao porteiro do prédio. Com elas vestiria a si mesmo, porteiro, e também aos seus irmãos e os cunhados.
                Quando retornei ao meu apartamento, não me senti bem com as poucas roupas que sobraram. Tudo muito básico. Algumas camisas sem estampa de várias cores, uma calça, uma bermuda para o eventual calor, um par de meias e um par de sapatos. Também as deixei com o porteiro, e fiquei só com a roupa do corpo.
                Depois foram os livros. Organizados em duas vastas prateleiras na sala, como uma pequena biblioteca, para impressionar os amigos. Aqueles ainda não lidos, tirei-os fácil dali. Lembrei  de algumas revistas velhas no quarto, notícias antigas, tão importantes em seus dias, e logo esquecidas. E em sua obsolescência fáceis de descartar.
                Os livros de estudo retirei um por um. Nunca folheados, sombra de uma expectativa de trabalho que se conseguiria com árdua leitura e muitas aulas. Promessa de algum dinheiro e prestígio social.
                Sobre a pilha já formada no chão coloquei os livros preferidos. Estes foram difíceis, sempre tão relidos, assim como os de infância, onde criei as esperanças de ao menos uma vez ser o herói da minha própria história.
E de uma vez só, acabei com o passado e o futuro a mim escritos por pessoas que sequer conheci.
                Por fim cheguei às fotos, às cartas e aos diários. Sim, ainda haviam restado as cartas, lembrança de uma época em que a tinta das canetas e dos sentimentos ainda não havia secado, substituída pela vaidade de lustrar teclados de celular.
                Nelas via a história, não a que outros haviam escrito para mim, mas a história que eu mesmo escrevi, sem maior treino ou habilidade. Também não era a que havia escrito para os outros, nos relatórios de um escritório, nas conversar do dia-a-dia, com sorrisos forçados, palavras bonitas e frases de efeito. Não, aquele era o registro de minha vida acontecendo, a qual me encarava, sem que a ela pudesse mentir. Aquelas imagens e palavras revelavam não só os prazeres sinceramente sentidos, pois afinal eu acreditava ser uma boa pessoa, um bom moço, amigo, filho, irmão, pai, e tudo o mais e essas coisas. Mas também todos os outros sentimentos não prazerosos envolvidos em uma foto linda na praia, de um amor que foi e já não existe. Da criança que um dia era, e agora se tornara apenas sonho. Dos amigos do colégio, dos quais não se sabia o paradeiro, e muitos nem o nome.
                Descartei-os todos.
                Os poucos móveis da sala, os quadros na parede. Em alguns dias estava tudo vazio. Restaram as paredes brancas, com algumas manchas, e alguns pregos fazendo sombra.
                Retirei a roupa que me restava, esquentei a água, e fui tomar um banho.
                Lá mesmo me livrei de minha pele, sem cerimônia. Minha barreira contra os ventos, a chuva, a luz dura e quente que arde no verão. A pele que me protegia, me envolvia, me dava forma, e me separava de tudo, ao mesmo tempo em que me dava um corpo uno. Que me dava um interior e um exterior que se repeliam como a noite e o dia.
                Fui deitar-me no chão do quarto, com o sangue formando poças no caminho enquanto dava passos para fora do box do chuveiro. E deitado, relaxei.
Enfim retirei o meu sexo. Não mais orgulho de um órgão que se infla por si mesmo. Nada a dizer-me que era homem, protetor ou agressivo. Nem o contrário, homem novo, preocupado em dizer-me igual à metade feminina da humanidade, querendo em minha zelosa e complacente patriarcalidade privilegiada conceder as mesmas oportunidades e refugiar-me em minhas falsas obrigações masculinas, impossibilitado pela biologia de conhecer as reais necessidades das mulheres.
E decidido, arranquei-o rápido. Não mais homem, nem mulher.
                Desfiz-me do sistema digestivo, nada mais de sentimentos intestinos, de cólicas ou borboletas no estômago. Retirei com calma a válvula do ânus, nada havia mais a segurar, de diarreias inevitáveis a sentimentos escondidos, ou mesmo prazeres proibitivos, sempre negados.
                O coração, tirei-o do peito com calma. Ah, o coração. O que ainda restaria entre aquelas veias coronárias? O coração era infindável. Levei horas separando-o, as veias e artérias saindo do coração e envolvendo tudo o que restava do corpo, do sexo que já separara, até os pulmões, as mãos, os pés e o cérebro.  
                Os pés foram mais tranquilos. Não tinham mais estradas para percorrer.
                Os pulmões suspiraram uma última vez. Talvez de saudade. Mas do quê? Mas não contestei nem tive pena, e me despedi deles mesmo assim.
                O cérebro pensei que fosse ser complicado, mas quando senti aquela massa gelatinosa, percebi que era fácil me livrar dele. Tantos anos para amadurecer, tantas palavras ouvidas, gostos rejeitados, sabores aprazíveis, perfumes e fedores, visões magníficas e pobres. Tantos anos de registro, desfeitos de uma só vez.
                Os órgãos que sobraram, sem coração, pulmão ou cérebro, ou mesmo pés para conduzi-los, tornaram-se ocos e sem vida, e foram tirados sem esforço. Quase se destacavam sozinhos, fossem os olhos, as orelhas e o ouvido interno, os lábios, a língua e o nariz.
                Terminado o trabalho, joguei as mãos para um canto, dando-me por satisfeito.
                 Mas logo percebi que ainda havia algo. Continuava me sentindo entulhado.
                Logo dei por conta, e peguei minha alma. Lavei e passei a ferro. Esfreguei as manchas de bondade, de tristezas, alegrias, ciúmes, vaidades e maldade. E joguei ao primeiro mendigo que passou por debaixo da janela, feliz com uma alma quase como nova e renovada.
                Desci as escadas, e fui sentar-me ao sol, no asfalto.
                Quanta liberdade! Sem pele para o sol queimar, sem pulmões para ficar ofegante, até mesmo sem nádegas que se queimassem ao contato do chão. Sem coração para duvidar, cérebro questionando ou alma a ser salva.
                E sem olhos para cegar, olhei direta e demoradamente ao sol pela primeira vez.
                Fiquei o resto do dia olhando para ele.
                Vi um por do sol como nunca antes. Um por do sol sem retinas. Sem ver. Luz e cores sem reflexão na carne, sem conduto nervoso, sem cérebro para codificar. As luzes e cores apenas ali estavam. Todas as existentes e possíveis. Um por do sol por uma única vez como é, por inteiro.
                E quando chegou a noite, ainda me sentia inquieto.
                E lembrei-me de libertar-me da mente.
                Tinha tempo, e fui aos poucos. Nunca tinha me acostumado muito com ela, podia ser perigoso. Separei primeiro as memórias, e soprei-as para longe. Depois as emoções, e fui despetalando devagar uma a uma. Sobrou a razão, e vi que não havia razão alguma. E ela evaporou no ar.
                No fim sobrou só minha identidade. Primeiro o meu nome, que se desfez como areia ao ser analizado com mais atenção.
Fiquei só com o meu eu.
E antes que esse eu se dissolvesse entre o céu e as nuvens, a terra e os pedregulhos, ainda tive tempo de ver as estrelas mais distantes, e atrás delas todo o universo. Não havia peso, não havia distâncias, nem fim nem começo. Não havia nada. Mas havia tudo.
E eu era, se um “eu” ainda havia, tudo que fora e seria, tudo que existe e existirá.
Apenas era. PNC!



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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O Nome do Jogo








Naquela manhã de segunda, Henrique chegara àquela pensão na Avenida W3 Sul indicado por um amigo da Faculdade Dulcina, o Dodô. Estava hospedado no apartamento da namorada dele, a Tereza, enquanto não achava um lugar definitivo para morar. O Dodô já morara ali antes, e disse que era bem agradável.
                A Faculdade Dulcina de Moraes fora fundada por uma famosa atriz homônima, quando se mudou do Rio para Brasília. A faculdade encontrava-se no conjunto de prédios chamado Conic, no Setor de Diversões Sul. Na Dulcina e no Instituto de Artes da UnB se concentravam os futuros atores do Distrito Federal.
                Sempre fora o sonho de Henrique ser ator.
No começo de sua adolescência, sua mãe ficara muito doente. Sabendo que estava próxima da morte, ela, sabendo da vontade do filho, disse que apoiaria seu desejo de entrar nessa carreira.
Por isso, desde que a mãe falecera, Henrique  começara a se dedicar ao que acreditava ser o seu dom. Na adolescência, passou a fazer parte de um grupo de teatro amador na escola em Luziânia, onde nascera. E chegou a ganhar um prêmio de revelação juvenil em um festival de teatro em Brasília.
Depois do prêmio, o pai passou também a apoiá-lo. Aquele senhor era dono de um pequeno comércio de produtos agrícolas. E se não era rico, ao menos tinha condições financeiras de pagar a faculdade do filho único, e de mantê-lo em uma cidade com custo de vida mais alto.
                 Henrique, além de talentoso, tinha um ar de galã. Era alto, no seu um metro e noventa, muito jovem, com pouco mais de vinte anos. Tinha uma cabeleira escura espessa e ondulada, e olhos cor-de-mel  amendoados. O sorriso, este cartão de visitas, era bonito, com dentes grandes e fortes, em um rosto magro e anguloso na medida certa. A pele negra era firme e sedosa, sem sinais de manchas.
                Henrique, tanto de talento quanto de beleza, possuía os dois.
                No entanto, como costuma acontecer com os iniciantes, faltava a ele a clareza e confiança nessas qualidades. A juventude, inexperiente, às vezes caminha de mãos dadas com uma dose de falta de segurança, que talvez somente um caminho trilhado por anos possa proporcionar.
                Por isso, foi com certa timidez que tocou a campainha da porta da pensão. Atendeu-o uma senhora, na casa dos cinquenta anos, com um vestido bonito. Estava de salto, muito elegante e perfumada.
                Ela era muito sorridente. Tinha a pele muito branca, os cabelos bem tratados, em tom alourado, e perguntou a ele com uma voz calma se era o Henrique.
                Ele confirmou que era o rapaz que ela esperava.  
                A senhora assentiu com a cabeça, e pediu a ele que entrasse.
               A casa, contrastando com a aparente simpatia e elegância da senhora, não era necessariamente aconchegante. Na verdade, parecia parada no tempo.
Alguns anos antes, e aqueles sofás seriam a última moda. Mas há muito haviam perdido suas cores originais, e no lugar de um vermelho escarlate, restava um salmão quase rosado, resultado de anos de exposição ao sol.
                Algumas estantes de vidro, com estátuas greco-romanas, completavam o ar  decadente: um busto de Júlio César, a deusa da justiça segurando displicente a balança. Por fim, em uma escultura ao lado da porta de entrada, Leda olhava, sem interesse, para Zeus disfarçado de cisne a seus pés.
Uma TV de tubo e uma vitrola antiga nos nichos do armário, feito de madeira compensada e já gasta, completavam o ar cansado daquele lugar.
Apesar disso, o ambiente era limpo e organizado, e o chão de madeira brilhava que dava gosto.
A senhora, com muito bom humor, chamou Carlos para sentar-se com ela dentro da casa. Atravessaram a sala e dirigiram-se à entrada da cozinha. Ao lado dela, via-se uma escada escura, que devia dar para os quartos mais acima.
A senhora entrou na cozinha primeiro, e convidou Henrique a sentar-se à mesa.
Ela abriu a geladeira, tirando de lá um gostoso bolo de chocolate e uma jarra de suco de acerola.
Enquanto ela procurava as louças para pôr a mesa, Henrique notava ao lado uma janela e uma passagem para um pequeno jardim de inverno. Parecia abandonado: o chão estava sujo de terra, e as plantas cresciam de forma desorganizada. Algumas delas estavam secas, como se alguém tivesse se esquecido de aguá-las.
- É meu irmão quem cuida do jardim. – disse a senhora, como que se desculpando, ao perceber o olhar de Henrique – ele é uma boa pessoa, mas um pouco desleixado.
Enquanto Henrique saboreava o pedaço de bolo – delicioso – a senhora revelou sua história.
Seu nome era Odete, e moravam ali só ela e seu irmão. Enquanto ela administrava a pensão, o irmão trabalhava como artesão na Feira da Torre de TV. Não tinha muito estudo, coitado.
Já ela trabalhara, até se aposentar, como secretária em um escritório de advocacia durante muitos anos.
Hoje era viúva, e o marido, tenente reformado do Exército, deixara uma pensão para ela.
- Você quer mais um pedaço de bolo?
- Não, não precisa.
- Só mais um! Aposto que você não tomou café hoje.
Henrique tentou disfarçar sua expressão, mas era verdade. Não havia tomado café, e começara a sentir fome. Não à toa o bolo estava tão bom. A tal Dona Odete havia acertado na mosca.
Como que adivinhando o pensamento de Henrique, ela colocou um pedaço caprichado no prato do rapaz. E encheu o copo de suco dele quase até a borda.
- E você, o que faz da vida, meu filho?
- Estudo na faculdade. E consegui trabalho em uma loja de perfumes, em um shopping aqui perto. Esqueci o nome.
- O Pátio Brasil?
- Isso mesmo.
- Você não é daqui, né?
- Sou de Luziânia.
- Eu ia dizer que você era goiano.
- O sotaque, né?
- É. E onde você estuda? Na UnB?
- Não, eu estudo na Faculdade Dulcina. Quero ser ator.
Mas a conversa foi interrompida por pisadas na escada, a madeira antiga rangendo com o peso. E logo um senhor entrou na cozinha. Tinha cabelos longos e brancos, a barba desgrenhada, com a pele branca e flácida, sem pelos. Estava somente de bermuda, e descalço. E cheirava a cigarro e a bebida.
Olhou Henrique de cima a baixo, com ar de desaprovação. Por fim olhou para a irmã, sem dizer nada. Abriu a porta da geladeira e tirou de lá uma lata de cerveja.
- A essa hora?... – reprovou Dona Odete.
Mas o senhor nada disse. Apenas saiu da cozinha com a cerveja na mão, sem voltar a olhar para eles.
- É o meu irmão, o Antenor, mas a gente só chama ele de Totonho. Hoje é o dia de ele descansar. Ele é assim mesmo, calado. Mas é uma boa pessoa.
Depois do café-da-manhã, Dona Odete levou Henrique para conhecer um dos quartos. Era espaçoso, com um bom armário embutido, e com vista para os fundos.
Haviam duas camas.
Da janela, Henrique podia ver algumas casas em frente, e à direita, a W3, já com bastante trânsito.
- Era o quarto meu e do meu marido – acrescentou ela – mas depois da reforma eu me mudei para um quartinho lá de cima. Você vai dividir aqui com outro rapaz, o Erismar. Tem algum problema pra você?
- Não, está ótimo.
- Então vamos à cozinha acertar as contas? Eu peço pagamento adiantado, tá bom?
- Pra mim está perfeito.
Na cozinha, Henrique preencheu um cheque assinado pelo pai, e deixou-o com Dona Odete. Depois depositaria o valor correspondente na conta dele, enquanto não abria a sua própria.
Na saída, o tal Totonho estava sentado no sofá desgastado. Henrique tentou não olhar para ele, mas foi inevitável.
- Acertou com a velha? – disse de repente Totonho.
Henrique virou-se completamente para o senhor, surpreso.
- Você sabe que aqui é perigoso, né? É cheio de prostituta à noite. Aqui só tem o que não presta. – disse de repente Totonho.
O rapaz ficou atônito. O Dodô não o havia avisado sobre isso.
Dona Odete veio acudir Henrique.
- Para de assustar o rapaz, Totonho. Não liga pra ele, não, viu moço? Parece que não tem o que fazer. Olha, aqui na W3 tem umas mulheres da vida, mesmo. Mas é só de noite, e lá na avenida: não incomodam ninguém. Tenho dó dessas moças... Mas fazer o quê?
- Não tem problema. Isso tem em toda cidade.
- Que dia você vem?
- Amanhã mesmo.
- Ó, toma a chave da casa.
E fechou com carinho a mão de Henrique sobre a chave, despedindo-se.
Assim que a senhora fechou a porta, Henrique pôde ouvir uma discussão se iniciando entre a tal Dona Odete e o irmão dela.
Será que havia tomado a decisão correta?
O Dodô e a Tereza explicaram que apesar do Totonho ser meio esquisito, realmente não incomodava. E a melhor parte era o bolo de chocolate da Dona Odete – até a Tereza já tinha experimentado.
E a Dona Odete ajudava todo mundo, era um amor de pessoa.
Isso fez Henrique sentir-se mais confiante, e com a ajuda de seus amigos, mudou com suas coisas para a pensão.
Dona Odete revelou-se uma grande amiga. E realmente apreciava as artes. Em questão de meses ela tornou-se sua confidente. Henrique contava a ela sobre suas dúvidas quanto ao futuro, como ainda se confundia com as ruas aparentemente iguais da cidade, sobre os seus projetos no teatro.
Dona Odete entusiasmava-se com as histórias do garoto. E quando Henrique tinha alguma cena nova para apresentar no Dulcina, lá estava ela, sempre sorridente, dando forças e aplaudindo o jovem rapaz.
Mimava-o sempre que possível, com mais um pedaço de bolo, ou uma lembrancinha que trazia da rua. Uma vez até comprou uma camisa nova para ele!
E às vezes, Henrique ficava duro. Mas Dona Odete emprestava algum dinheiro, ou dava um desconto no aluguel, dizendo que ele a pagava em outra oportunidade. E quando ele tentava pagar de volta, fazia que nem se lembrava, e recusava as notas que Henrique lhe estendia. Dizia que estava investindo em um novo artista.
E Henrique, que perdera a mãe tão cedo, sentia em Dona Odete quase que uma mãe adotiva, naquela cidade ainda tão nova e estranha para ele.
De vez em quando, Henrique ainda cruzava com a presença parda do Totonho na pensão. Mas não trocava palavras com ele, apesar do olhar sempre enviesado daquele senhor. Parecia reprovar algo em Henrique. Era incômodo, mas Henrique seguia seu caminho, fingindo não se importar.
Um noite, após voltar da faculdade, Henrique revelou a Dona Odete que tinham-no chamado para um teste no dia seguinte, para entrar em um grupo de teatro em São Paulo. Era de um famoso diretor que estava na capital federal. Imagina, ele, em São Paulo!
Mas Dona Odete olhou para ele com um sorriso triste. E ficou com os olhos marejados.
Henrique abraçou aquela senhora. Nunca esqueceria o que ela fizera por ele. E Dona Odete o abraçou de volta, com grande carinho.
O teste era na Asa Norte, na manhã do dia seguinte, bem cedo. Henrique ligou para Dodô para irem juntos. Ele e Tereza se comprometeram a dar uma carona ao rapaz no carro dela, assim que saíssem de sua casa.
Mas no outro dia, na mesa do café, Henrique ainda estava preocupado. Nenhuma mensagem ainda. E nada do Dodô e da Tereza aparecerem.
- Por que não liga para eles? – disse Dona Odete.
- Eu estou tentando, mas eles não atendem. Já mandei mensagem também.
- Mas que confusão... Você não tem nem o endereço?
- Não. Só lembrei da carona. Já tava tão seguro disso que esqueci de perguntar. Só sei que é um espaço novo, lá no fim da Asa Norte.
- Olha, meu querido... – e ela foi abrindo a bolsa – Pega esses trocados. Toma um táxi, que já tá quase na hora. No caminho, você vai ligando para o seu amigo, para saber o endereço.
- Nossa, nem sei o que dizer, Dona Odete!
Henrique pegou o dinheiro, e foram correndo para a porta. Novamente viu o Totonho na sala, assistindo a TV e bebendo uma latinha de cerveja. Mas não tinha tempo para se preocupar com ele.
- Boa sorte, querido!
E Dona Odete deu-lhe um abraço carinhoso e apertado!
E quando o táxi passou por baixo do viaduto acima da W3, entrando na Asa Norte, Henrique decidiu ligar mais uma vez para o Dodô.
Mas quando colocou a mão no bolso... Onde estava o celular? Pediu para o táxi parar, começaram a procurar debaixo do banco do carro, devia ter caído por lá... Nada!
O taxista perguntou a que altura ficava o teatro, mas Henrique não sabia dizer. Só sabia que era no final da Asa.
O táxi ficou rodando ali na altura da 16... Passou nas 200, 400... Depois passou debaixo do Eixão... Foram até as 900, e então subiram pela W5 até o CEUB... Nem sinal do lugar! E a hora passando.
Já passava quase meia hora do horário marcado para o teste quando Henrique por fim desistiu, e pediu para voltar.
Na pensão, procurou o celular em cima da mesa da cozinha. Era o último lugar onde o havia visto. Perguntou a Dona Odete se ela havia encontrado algo. Ela disse que nada.
- Liga pra ele. Vai que ficou no táxi mesmo, e você não achou?
E quando ligaram do telefone fixo da pensão... Ouviram um toque de celular lá em cima, nos quartos.
O toque vinha de dentro do armário, no quarto de Henrique. Ele começou a abrir as gavetas... E finalmente descobriu o aparelho em uma delas... No meio das coisas do Erismar, que dividia o quarto com ele!
Assim que o Erismar voltou à pensão, Henrique perguntou o que tinha acontecido. Erismar dizia que não sabia de nada. Naquela manhã fora à cozinha tomar o café, e tinha ido direto ao trabalho.
Mas Dona Odete não se convenceu. Viu Erismar tomar o café logo depois de Henrique sair. E ninguém mais dera notícia do celular depois disso.
Ficou claro para todos que Erismar passara pela cozinha, havia descoberto o celular sobre a mesa, e escondera o aparelho.
Dona Odete ficou decepcionada com aquele jovem. Não era à toa que de vez em quando ela sentia falta de alguma coisa na casa. E Erismar foi obrigado a abandonar a pensão no mesmo dia.
                Henrique também cobrou de Dodô e Tereza explicações. Eles disseram que haviam acordado tarde, mas que assim que saíram foram correndo até a pensão, ligando o tempo todo no celular para o amigo. Mas ninguém atendia. Se Henrique não tivesse deixado o celular na pensão...
Com pena de Henrique, Dona Odete permitiu que ele ficasse com o quarto todo, somente pagando o mesmo de antes, pelo menos até acharem um novo morador.
E os cuidados de Dona Odete se redobraram. Uma noite, quando estava muito frio, ela colocou um cobertor sobre Henrique, que estava dormindo. Ele acordou, e ela disse para ele ficar tranquilo, ela só não queria que ele pegasse uma friagem. Deu-lhe um beijo na testa de boa noite, cobriu-o com as cobertas e fechou a porta.
A partir de então, este se tornou um ritual entre eles, repetido todas as noites.
Uma vez, enquanto conversavam no quarto de Henrique, com ele já deitado na cama, e Dona Odete sentada ao seu lado, ela colocou uma mão sobre a dele com delicadeza. E começou a acariciá-la. Olhou nos olhos de Henrique com um profundo carinho. E o garoto ficou emocionado. Mais uma vez lembrou-se de sua mãe já falecida.
Henrique sentiu que a relação de confiança entre eles aprofundava-se cada vez mais.
O que não mudou foi a inconveniência do Totonho na pensão.
Uma vez Henrique saía apressado para o trabalho, quando o Totonho, sempre assistindo TV na sala, o interpelou:  
- Você precisa tomar mais cuidado com as suas coisas. Tem muita gente que mexe nas coisas dos outros aqui.
- Só o Erismar. Mas a Dona Odete já tirou ele da pensão.
- Só o Erismar? Eu já falei, meu filho. Aqui só tem gente que não presta.
E deu um trago no cigarro, apagando-o no cinzeiro ao seu lado. Olhando novamente para o rapaz com ar de reprovação.
Enquanto saía, Henrique pensava que o Totonho sim, é que podia sair daquela pensão. Não gostava nem um pouco nele, sempre cheirando a bebida e cigarro.
Mas lembrando-se do celular, uma dúvida restava em sua cabeça. Se o Erismar queria roubar o celular, porque não desligou o aparelho?
E a Dona Odete? Não tinha ouvido o aparelho tocando, enquanto o Dodô tentava ligar para Henrique?
Mas não teve coragem de perguntar isso para aquela senhora. Com certeza no dia estava ocupada cuidando da casa, e não conseguiu ouvir o celular. Tinha medo de magoá-la. E afinal, já estava tudo resolvido.
Na volta do trabalho, Henrique já estava chegando perto da pensão, quando viu Totonho, de repente, sair pela porta da frente.
Estava levando o lixo para fora de casa, quando parou para olhar uma coisa naquele saco preto de plástico. Estaria vazando?
- Ei, Henrique, venha aqui ver uma coisa.
Um tanto receoso, o rapaz chegou perto de Totonho. Este apontava para um rasgo no plástico.
- Olha isso.
Ele abriu um pouco mais o rasgo, deixando evidente a ponta de um papel.
Totonho retirou o papel dali com cuidado. Era um envelope com uma carta. E estava aberto. Totonho leu o que estava escrito no envelope com atenção.
- Menino, acho que isso aqui é seu.
E Henrique, ainda estranhando tudo aquilo, pegou o envelope em suas mãos.
E não pôde acreditar.
O envelope vinha em seu nome. Era de uma rede de televisão do Rio de Janeiro.
Quando abriu a carta, uma surpresa. Era um convite para um teste!  
Mas o que aquela carta estava fazendo no lixo? Com o envelope aberto?
- Eu não sei de nada. Pergunta para a Odete.
Ela estava varrendo a sala quando Henrique entrou com a carta nas mãos, seguido mais atrás por Totonho.
- Dona Odete, o que quer dizer isso? - e mostrou-lhe o papel.
E para surpresa dos dois, Totonho interveio.
- Vamos,  irmã. Abre o jogo. Fala logo! Aconteceu de novo, não foi?
Ela largou a vassoura de lado, e sentou-se no sofá, já chorando.
- Não foi minha culpa!
E Dona Odete confessou tudo. Apaixonara-se por Henrique. E tudo que fazia era para não perdê-lo.
Quando Henrique falara a ela do teste para o grupo de teatro em São Paulo, ela ficou aflita, e decidida a fazer de tudo para impedir que isso acontecesse.
Por isso, quando abraçou Henrique na porta da pensão, naquela manhã de correria, ela sutilmente retirou o celular de seu bolso. Se o seu amigo ligasse, Henrique nunca iria descobrir onde era o lugar. Dessa forma, perderia o teste, e não se mudaria para tão longe.
Como tinha planos de conseguir seduzi-lo, ela teve uma nova ideia, e espertamente deixou o celular nas coisas de Erismar, para acusá-lo e expulsá-lo da pensão. Com isso, Henrique ficaria sozinho no quarto, facilitando tudo.
Aquela noite fria foi a oportunidade perfeita para aproximar-se dele. E a cada nova noite tentava ficar mais perto de seu amor.
Henrique lembrou-se do carinho de Dona Odete em suas mãos, e sentiu-se enojado.
Ela acreditava que estava quase conseguindo envolver Henrique. Quando chegou aquela carta de uma rede de TV, desconfiou que podia ser outro teste. Por isso, colocou o envelope sobre a água quente da chaleira. O vapor amoleceu a cola, e ela pode abrir o envelope, ler a carta, e confirmar seus temores.
Mas ele precisava entender! Foi o amor dela que a fez jogar a correspondência no lixo! Não podia se arriscar a perdê-lo!
                Dona Odete levantou-se, e ainda tentou abraçar Henrique, implorando-lhe perdão. Mas Totonho colocou-se à frente dela, impedindo-a.
                Henrique sentia um misto de raiva e nojo por aquela mulher.
Mas como assim, “aconteceu de novo”?
                - Conta pra ele, Odete! Acaba com isso de vez! – interveio mais uma vez Totonho.
                E ela revelou que não era viúva, mas sim divorciada. Construíra aquela pensão com o então marido. Mas o seu casamento não ia bem. E assim que começaram a chegar aqueles rapazes, dentre eles havia um com que se identificara tanto... Conversavam muito, e ele era tão lindo... Um dia o marido voltou mais cedo do trabalho, e encontrou-a na cama com o estudante.
                Naturalmente se separaram. O marido foi morar em outro estado. Desde então, moravam ali só ela e o irmão, que sem emprego fixo, passou a fazer-lhe companhia.
                - Mas não foi só esse, né, irmã?
                E ela confessou que depois do divórcio, se sentia sempre sozinha... E às vezes se envolvia com algum dos estudantes. Às vezes dava algum dinheiro em troca de favores sexuais, outras horas comprava algum presente.
                Mas só se apaixonara novamente por Henrique.
                Henrique estava horrorizado com tudo aquilo. E decidiu sair da pensão imediatamente.
                E naquele mesmo dia, enquanto seus amigos colocavam as coisas dele no carro de Tereza, teve coragem de se aproximar de Totonho.
                - Aquilo... Aquela cena perto do saco de lixo... Não foi um acidente, foi?
                - Eu conheço a minha irmã. Quando eu vi você com ela, eu sabia que não ia prestar. Quem nem da primeira vez. Eu vi quando ela pegou o seu celular, e levou lá pra cima no seu quarto. Mas você não ia acreditar se eu dissesse. Então fiquei esperando ela dar algum deslize. Sou eu quem pega a correspondência. Quando vi que a carta era pra você, deixei na mão dela, pra ver o que acontecia. Eu sabia que ela ia jogar fora. Depois que ela saiu, foi só posicionar a carta direitinho no saco, e abrir um buraquinho. Fiquei olhando pela janela, esperando você voltar, e saí na rua assim que vi você. O resto você já sabe.
                - E por que você fez isso? Pra me ajudar?
                - Por que eu não presto. Ela não presta também, mas pelo menos eu sou honesto, eu sei que eu não valho nada. Só que ela fica tirando onda de madame, de amiga dos outros. E ainda me esnoba.
                - Mas você me ajudou tanto... Pôxa, obrigado. Acho que você presta bem mais do que você pensa.
                E pela primeira vez apertou a mão de Totonho.
                Henrique foi para o Rio de Janeiro. Passou no teste, e agora faz uma ponta em uma novela na TV.
                E nunca mais se lembrou de Dona Odete.
                Ela que de vez em quando, quando Henrique aparece na telinha, ainda sente seu coração bater mais forte. Mas somente até o rapaz novo da pensão voltar da faculdade. Tão bonito... Tão educado... Conversavam tanto...
                Assim que ele chegar, ela vai pegar mais uma coberta para ele. Afinal, está tão frio hoje à noite, não? PNC!






"Eu, hein? Eu que não queria trombar com essa figura por aí... Que sinistro!"



Ah, que pena... Acabou mais um conto! Mas daqui a quinze dias tem mais! Beijxs a todxs! Mas antes, não se esqueça... Comentários, críticas e sugestões são sempre bem-vindos!


Continue com a gente, e pire no conto! <3