A minha rua é geometricamente perfeita. O asfalto é
pouco desgastado. Ao longo dos seus 489 metros, sem sobrar ou faltar, há três
quebra-molas estufados, afastados simetricamente um do outro. As casas têm
portões da mesma idade que os primeiros moradores que, naturalmente, já
descansam em algum cemitério de portões enferrujados. Os telhados, em sua
maioria, estão sutilmente mofados de um verde de tom qualquer, mas algum dia
foram telhas avermelhadas, assim como os lábios das putas que passam em minha
rua, precisamente às 21Hrs, sem sobrar ou faltar. Na esquina, há dois postes
magros de luzes amarelas que iluminam os telhados avermelhados - que agora
ficam alaranjados -, cruzando sombras projetadas pelos sacos de lixos que ali
exalam a decomposição. Voltando à rua, defronte à casa 36, bem no umbigo sujo
da rua, onde moram Dona Graça e suas filhas mães solteiras, há um gato siamês
que mia em busca de uma gata no cio. Quão sujo é esse ato, gato! Sob às luzes
anêmicas, as putas de corpos geometricamente imperfeitos estão na esquina,
forçando o cio, exalando a límpida rotina, mantendo a graça que não aparece nas
sombras. Os seus joelhos enferrujados se estufam, hasteando os ossos
simetricamente desgastados pela falta, falta de luz na carne. Os homens altos e
magros cruzam olhares com a cor de um verde qualquer. Faltam e não sobram
cédulas verdes, cédulas assim não existem mais, mas as putas continuam com o
mesmo valor. Não há gatos siameses, tampouco vira-latas. Não há latas,
entretanto, no asfalto da minha rua há ferrugem nos pequenos pregos que caíram
de alguma cruz. São três putas, são 3Hrs da manhã, os quebra-molas iluminam a
volta das putas que são filhas de alguma cruz. Voltando à minha rua as putas
gritam "chispa" ao gato que gira geometricamente frustrado em círculos,
sem ter achado alguma gata no cio. Tantos bêbados gritaram "chispa",
na frugal tentativa de espantar as 7 prestações de vidas das putas puras. Sem
frustrações, miam alto girando a base de seus batons avermelhados, indo ao
descanso de seus lençóis amarelados pela luz da minha rua que as perseguem com
obstinação. Chispa, putas! A minha lua é geometricamente perfeita e a minha rua
descansa, sem miados, em uma calma oração."
Pirei no Conto
quarta-feira, 28 de janeiro de 2015
Contista convidado: Fabrício Hundou
Fabrício Hundou é um jovem brasiliense de 21 anos, a quem a escrita chamou a atenção desde a infância, por influência materna. Culto e educado, é também alguém muito irreverente e extrovertido. Participa do Lounge Poético que acontece todas as terças-feiras no Balaio Café, na 201 Norte, e tem alguns de seus contos publicados no site Hierophant.
Pirei no Conto - O que inspirou você a se tornar um escritor?
Hundou - Nos anos noventa, minha mãe tinha um livro de poesias, de
folhas bem amareladas, e eu o
adorava, simplesmente pela capa ser um violoncelo preenchido por rosas.
Na infância, fui uma criança muito criativa, porém conversava pouco. Na escola, ao fazer redações, era
muito hiperbólico, muitos professores me podavam. Por anos, tive o
hábito estranho de ler o dicionário Aurélio. Extraía palavras
complicadas e rebuscadas, anotava o significado e tentava inseri-las no
meu quotidiano. Quando entrei na adolescência, conheci a internet. Fiz um blogóide aos 14 anos de idade
onde publicava textos breves, mas com rimas. Tenho furtiva intimidade com as
palavras: esperança, saudade, sonho, tempo e vida. Todavia, não posso
levar estas como resumo de meus influxos, eis que mesmo o silêncio pode
ser inspirador.
Pirei no Conto - Qual foi a inspiração para escrever As Putas da "Mia" Rua?
Hundou - No
auge da madrugada, por volta de quatro horas da manhã, alguns gatos em minha
rua realmente estavam no cio e os sons eram estridentes. Isso me fez
perder o sono. Peguei o computador e comecei a digitar. De repente, o
computador desliga por falta de bateria. Ao religar, tudo o que eu tinha
escrito tinha sido perdido. Tive um surto de desgosto. Após os
suspiros, forcei a memória e comecei a reescrevê-lo. Num cômico devaneio
comparei os felinos de rua às garotas de programa, depositando muita
pejoratividade e escárnio, implementando vozes sociais, crítica e
poesia. Foi inesquecível como se deu esse conto.
Pirei no Conto - Como funciona para você o processo de escrita?
Hundou - Escrevo simultaneamente fazendo revisões, e me vigio para reler sempre. Porque muitas vezes sou um pai irresponsável: nem tudo o que crio quero voltar a ver. O único porém é que, quando releio, sempre quero alterar algo. E nesse segundo momento eu me freio para não alterar nada: uma vez que escrevo, escrito está. Aquele momento torna-se singular, um registro temporal. Incontáveis foram as vezes que reli algo e não me reconheci, questionei quem seria. Alguns acontecimentos me auxiliam na criação de um texto - ora seja a depressão emocional, ora sejam os miados dos gatos na rua. Uma frase ou palavra podem me dissolver por inteiro. Gosto de buscar coesão e pouca incoerência. Creio que isso tem trazido uma identidade à minha forma de escrever. Não tenho uma rotina para esse meu lado, por vez, há muita rebeldia. Posso acordar de madrugada, abrir o computador ou pegar uma caneta e anotar. Posso estar no trânsito, guardar em pensamento e depois de muito tempo desenvolver.
Hundou - Desde que ingressei na faculdade, perdi o hábito da literatura. Portanto, as influências estão mofadas. Gosto muito de Viviane Mosé que traz uma incrível perspectiva de filosofia e psicanálise, uma releitura nietzscheana. Gostei muito de Clarice Lispector. O sarcasmo niilista de Fiodór Dostoiévski e o puro infeliz romance de Caio Fernando Abreu me resumem.
segunda-feira, 26 de janeiro de 2015
A Onça
Anísia estava
com a pulga atrás da orelha. A maneira como Vitório vinha lhe tratando
ultimamente chega já estava irritando. Era um tal amor que vamos combinar: boa
coisa não podia ser. Um homem bronco daqueles inventava de trazer flores, de
dar beijinho no cangote, de encostar o pezinho frio no dela debaixo da coberta.
Ah, mas ele ia ver.
Um belo dia ele saiu para o bar,
Anísia foi atrás. De soslaio, como quem não quer nada, a bolsinha de compra
debaixo do braço, qualquer coisa dizia que estava indo para o mercado. Àquela
hora? Pois é, se não fosse ela, a geladeira vivia vazia, não tinha nem para as
visitas.
Mas a discussão não foi
necessária. Aquele homem estava tão entretido no seu caminho, que nem percebeu
a presença dela. Anísia só sentia o sangue quente subindo para a cabeça, a
mãozinha fechando num soco. Ora.
Vitório agora assobiava. O passo
macio, bem pedante. Mas como tava apresentado! Parou em frente a uma porta,
bateu duas vezes. Abriu uma quenga muito da desavergonhada, flor no cabelo, o
lábio pintado de vermelho, perfume que chega empesteava. Havia de pensar que
era incenso, para sair perfumando o ambiente por aí. Deu um beijinho no rosto,
e puxou ele para dentro.
Anísia deu um pulo, jogou a
quenga para o lado, Vitório para o outro.
- Mulher, cê tá louca? –
surpreendeu-se Vitório.
Mas Anísia não queria saber. Deu
um safanão na sacripanta, rasgou o vestido, e se agarrou no pescoço da pobre,
que começou a sufocar – “me largue, sua louca!”, “Então deixe meu homem em
paz.” A quenga desdenhou: “Quem manda não cuidar do seu macho?”.
Outro safanão, saiu sangue, o
cabelo comprido agora na mão de Anísia.
- Repete se tu é mulher!
- Me larga, sua cachorra!
- Cachorra é você, que não
respeita o homem das outras!
Vitório tentou se afastar de mansinho,
mas Anísia percebeu.
- Volte aqui, seu cabra! Que tu
não é homem!
Vitório podia ser safado, mas
era cabra macho. Não ia levar desaforo da mulher. Mas quando já ia dar o
primeiro tabefe, Anísia foi mais rápida. Agarrou foi logo seus bagos.
- Vai! Tu não é homem? Vem
bater! Te arranco tua macheza é agora!
E apertava mais ainda.
- Oh, meu amorzinho! Vamo, me
largue, minha cabritinha!
Depois desse dia, Vitório nunca
mais foi para o bar, e perdeu os amigos. Pois toda a vez que saía na rua,
alguém dizia: “Essa onça agora mia!”.
Blogueiro convidado: Daniel Couri
Daniel Couri é um cara super simpático e humilde, como um bom mineiro de Muriaé.
Jornalista de bom faro, percebeu que não havia nada escrito sobre o grupo ABBA no Brasil, sendo o autor da primeira biografia do grupo em língua portuguesa, "Made in Suécia - O paraíso pop do ABBA" (Editora Página Nova, 2008).
Posteriormente, a biografia foi revisada e ampliada, resultando no livro "Mamma Mia!" (Panda Books, 2011), lançada no ano em que o musical de mesmo nome estreava no Brasil com grande sucesso.
Na capital federal há mais de dez anos, formou-se no CEUB e trabalhou em sites inovadores da cidade como o "Candango", e atualmente é roteirista de uma produtora brasiliense.
Escreve o blog Porcos, Elefantes e Doninhas - onde coloca sua visão aguçada sobre o lado "B", e muitas vezes desconhecido e curioso, da cultura pop dos anos 70 em diante.
Pirei no Conto - O que inspirou você a escrever uma biografia sobre o ABBA?
Couri - O que me inspirou foi o gosto pelo ABBA mesmo, meu interesse e curiosidade crescentes. Desde a adolescência, fui pesquisando e acumulando informações sobre o ABBA. Livros, sites, depoimentos, recortes, vídeos, tudo. Depois de alguns anos, percebi que, com o volume de material que eu havia escrito (por hobby mesmo), dava pra fazer um livro. O primeiro, "Made in Suécia - O Paraíso Pop do ABBA", foi publicado em 2008 pela editora Página Nova. Foi a primeira biografia do grupo em português. Até então, não existia nenhum livro sobre o ABBA no Brasil, traduzido ou publicado. Em 2010, a Panda Books me procurou e perguntou se eu não estava interessado em escrever outro, dando destaque ao musical "Mamma Mia!", cuja montagem brasileira ia estrear em São Paulo naquele ano. Topei e, em 2011, foi lançado o "Mamma Mia!" - mesmo nome do musical - com ainda mais informações, detalhes e curiosidades.
Pirei no Conto - Você teve ajuda de fãs do mundo inteiro, e do biógrafo do ABBA na Suécia. Como foi o processo de elaboração dos livros com essas parcerias?
Couri - A ajuda de fãs e colecionadores europeus foi fundamental. Encontrei pessoas muito bacanas e generosas, que contribuíram com material fotográfico e informações. Carl Magnus Palm, o biógrafo do ABBA, também foi extremamente gentil e me respondeu várias perguntas, tirou dúvidas. Ele tem vários livros publicados sobre o ABBA. Ano passado, pela primeira vez, um livro dele foi traduzido para o português e lançado aqui no Brasil, "ABBA - A Biografia". Fico feliz que meu livro tenha aberto o caminho para outros livros sobre o ABBA que foram depois traduzidos e lançados no Brasil também.
Pirei no Conto - Qual o tema do blog "Porcos, Elefantes e Doninhas"? O que o motiva a escrevê-lo?
Couri - O tema do meu blog são as coisas 'esquisitas' que curto. Músicas antigas, filmes antigos e/ou pouco conhecidos, livros, um poco de comportamento e temas ligados à nostalgia. Muitas daquelas coisas sobre as quais escrevo são meio obscuras ou pouco divulgadas. (No próprio blog tem uma explicação sobre o nome). Algumas vezes coincide de eu escrever sobre alguma coisa que volta à tona (como algumas novelas do canal Viva, por exemplo), mas no geral, escrevo sobre uma cultura pop mais "esquisita" e obscura (risos).
**********************************************************************************
Nosso próximo convidado será o contista Fabrício Hundou. Além de novos contos, toda semana!
Jornalista de bom faro, percebeu que não havia nada escrito sobre o grupo ABBA no Brasil, sendo o autor da primeira biografia do grupo em língua portuguesa, "Made in Suécia - O paraíso pop do ABBA" (Editora Página Nova, 2008).
Posteriormente, a biografia foi revisada e ampliada, resultando no livro "Mamma Mia!" (Panda Books, 2011), lançada no ano em que o musical de mesmo nome estreava no Brasil com grande sucesso.
Na capital federal há mais de dez anos, formou-se no CEUB e trabalhou em sites inovadores da cidade como o "Candango", e atualmente é roteirista de uma produtora brasiliense.
Escreve o blog Porcos, Elefantes e Doninhas - onde coloca sua visão aguçada sobre o lado "B", e muitas vezes desconhecido e curioso, da cultura pop dos anos 70 em diante.
Pirei no Conto - O que inspirou você a escrever uma biografia sobre o ABBA?
Couri - O que me inspirou foi o gosto pelo ABBA mesmo, meu interesse e curiosidade crescentes. Desde a adolescência, fui pesquisando e acumulando informações sobre o ABBA. Livros, sites, depoimentos, recortes, vídeos, tudo. Depois de alguns anos, percebi que, com o volume de material que eu havia escrito (por hobby mesmo), dava pra fazer um livro. O primeiro, "Made in Suécia - O Paraíso Pop do ABBA", foi publicado em 2008 pela editora Página Nova. Foi a primeira biografia do grupo em português. Até então, não existia nenhum livro sobre o ABBA no Brasil, traduzido ou publicado. Em 2010, a Panda Books me procurou e perguntou se eu não estava interessado em escrever outro, dando destaque ao musical "Mamma Mia!", cuja montagem brasileira ia estrear em São Paulo naquele ano. Topei e, em 2011, foi lançado o "Mamma Mia!" - mesmo nome do musical - com ainda mais informações, detalhes e curiosidades.
Pirei no Conto - Você teve ajuda de fãs do mundo inteiro, e do biógrafo do ABBA na Suécia. Como foi o processo de elaboração dos livros com essas parcerias?
Couri - A ajuda de fãs e colecionadores europeus foi fundamental. Encontrei pessoas muito bacanas e generosas, que contribuíram com material fotográfico e informações. Carl Magnus Palm, o biógrafo do ABBA, também foi extremamente gentil e me respondeu várias perguntas, tirou dúvidas. Ele tem vários livros publicados sobre o ABBA. Ano passado, pela primeira vez, um livro dele foi traduzido para o português e lançado aqui no Brasil, "ABBA - A Biografia". Fico feliz que meu livro tenha aberto o caminho para outros livros sobre o ABBA que foram depois traduzidos e lançados no Brasil também.
Pirei no Conto - Qual o tema do blog "Porcos, Elefantes e Doninhas"? O que o motiva a escrevê-lo?
Couri - O tema do meu blog são as coisas 'esquisitas' que curto. Músicas antigas, filmes antigos e/ou pouco conhecidos, livros, um poco de comportamento e temas ligados à nostalgia. Muitas daquelas coisas sobre as quais escrevo são meio obscuras ou pouco divulgadas. (No próprio blog tem uma explicação sobre o nome). Algumas vezes coincide de eu escrever sobre alguma coisa que volta à tona (como algumas novelas do canal Viva, por exemplo), mas no geral, escrevo sobre uma cultura pop mais "esquisita" e obscura (risos).
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Nosso próximo convidado será o contista Fabrício Hundou. Além de novos contos, toda semana!
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
Quem Disse, Berenice?
Quando
Juvenal viu aquela menina no shopping, em um fim de semana, olhando um cartaz
em frente ao cinema, logo percebeu que aquele era o amor da sua vida. Só
precisava conhecê-la melhor, se apresentar, e ela logo saberia que ambos estavam
destinados a passar junto o resto de suas vidas.
Logo
chegou uma amiga, que a chamou de Ana Júlia. Ana Júlia. Sonoro como aquela
música, de qual grupo era mesmo aquela música? Mas Juvenal não pôde pensar
muito, as duas amigas já se dirigiam para a bilheteria, e Juvenal, sem perder
tempo, logo se postou atrás delas na fila, para saber a que filme iriam
assistir.
Pediram
duas meias para o filme do Homem de Ferro, vejam só, tinham isso em comum, ele
também gostava do Homem de Ferro! Logo comprou sua entrada, e enquanto as duas
escolhiam seu lugar, Juvenal postou-se duas fileiras atrás. Distante o
suficiente para que o coraçãozinho dela não se assustasse – imagine se ela
pensasse que ele era um destes perseguidores? – e perto o suficiente para
usufruir da sua beleza, ela que logo, logo, saberia de seu destino nato com
ele.
Ana
Júlia tinha cabelos curtos, negros, olhos castanhos, a pele amorenada, o nariz
pequeno e sardento, pequena e magra, enfim, como dizem, um tipo mignon. E Juvenal lembrou-se da meia-entrada,
era estudante! Uma menina inteligente, provavelmente a primeira da classe! O
coração de Juvenal palpitava com sua pequena amada, ali tão perto, ele já tão
sabido dela!
Após
o cinema, Juvenal, de longe, acompanhou quando ela saiu do cinema e foi com a
amiga pegar o ônibus. A amiga desceu no seu ponto, e Juvenal acompanhou Ana
Júlia até sua casa. Após sair do ônibus, ela dobrou uma rua e entrou em um
bloco de apartamentos. Juvenal ficou aguardando do lado de fora para ver se ela
apareceria na janela. Uma luz se ligou no terceiro andar, e por um átimo de
segundo Juvenal pôde vê-la, antes que ela cerrasse a cortina.
Juvenal
passou a acompanhá-la todos os dias. Soube que ela gostava de verde, que tinha
um poodle, que às vezes andava descalça na grama, e que tinha vergonha de
mostrar as pernas, e por isso só andava de calça.
E
descobriu também que Ana Júlia tinha um noivo. Um noivo! Mas Juvenal
compreendia as razões de Ana Júlia. Tão desesperançada, apenas noivara para não
ficar sozinha, claro! Logo, logo ele se declarava, e obviamente Ana Júlia
terminaria o noivado!
Mas
não era só Juvenal que estava apaixonado por Ana Júlia. Também havia alguém que
havia se apaixonado por Juvenal.
Sem
que ele desconfiasse, a loira Berenice também vira Juvenal em frente ao cinema,
e se encantara com o moço. E também Berenice começou a observar Juvenal,
seguindo-o astutamente de longe diariamente.
Berenice
logo percebeu quem era a paixão de Juvenal.
E teve uma ideia.
Enquanto
isso, Juvenal soube que Ana Júlia havia marcado a data do casamento. Sem mais
tempo, ele precisava evitar que ela estragasse a sua vida!
Desajeitadamente,
Juvenal levou algumas flores para Ana. Foi até seu prédio, e pediu ao porteiro
que apertasse o botão de seu andar. Mas Ana Júlia não quis atender, claro,
ainda não o conhecia, a pobrezinha.
Juvenal
ficou no meio da rua, sem saber o que fazer, até que viu um carro saindo da
garagem! Era a chance de Juvenal entrar no prédio, declarar-se a Ana, e tirá-la
de um casamento destinado à infelicidade.
Porém
Juvenal não contava com a presença da câmera de segurança do prédio. O porteiro
logo viu o doidinho entrando na garagem, e avisou imediatamente os pais de Ana
Júlia, enquanto ligava para a polícia.
Pobre
Juvenal! Um soco no rosto, as flores ao chão, a polícia algemando-o, e nem pôde
declarar o seu tão profundo amor.
Mas
eis que, quando Juvenal saiu da delegacia, depois de passar uma noite no
xadrez, quem ele vê não é Ana Júlia? Toda à sua espera, com a camisa verde, o
cabelo negro e curto, enfiada em calças compridas, passeando com os pés nus no
gramado, acompanhada de seu fiel cachorrinho?
Juvenal
aproximou-se rapidamente, antes que aquela imagem se desvanecesse como se
miragem fosse, encontrando junto ao seu abraço a carne e o osso de seus desejos!
Mas
era Berenice.
Berenice
podia ter lá suas manias, como perseguir um estranho completo na rua, mas
inteligente ela era: percebeu que era parecida com Ana Júlia, pequena e
magrinha, até o rosto era igual. Então cortou o cabelo, tingiu de escuro,
comprou um poodle, tirou a calça e uma camisa verde da gaveta, e enfim fisgou
Juvenal.
Claro
que Juvenal percebeu depois do beijo que ela era Berenice, ele era meio maluco,
mas não tapado. Porém muito exigente: foram felizes para sempre, até o dia em que
Berenice se esqueceu de retocar as raízes dos cabelos.
Pirando no Conto
Por que pirar no conto? Pra não pirar na vida. Pra ver pelos olhos de
uma criança de novo, e perceber tudo pela primeira vez e ficar
intrigado. Por que tudo que vemos tem uma história, e ela é mais
profunda, estranha e bela do que percebemos inicialmente. Se eu puder dar uma
fagulhazinha disso pra vocês, já estou satisfeito. Escrever pra mim é
necessidade, e espero que pra vocês seja tão gostoso ler quanto foi pra
mim escrever. Isso é tudo.
Beijão grande de Brasília, desse céu sempre anil, emoldurado pelas árvores belas e tortuosas do Cerrado! Evoé!
Beijão grande de Brasília, desse céu sempre anil, emoldurado pelas árvores belas e tortuosas do Cerrado! Evoé!
O Homem Sem Imaginação
Gervásio era um homem
sem imaginação.
Já quando era criança, dona
Gerusa, sua mãe, percebia que Gervásio era diferente das outras crianças. O
primeiro susto foi quando completou um ano de idade. Em vez de dizer “mamãe”, a
primeira palavra de Gervásio foi “não”.
Sua mãe parou de
levá-lo ao parquinho do bairro, pois as outras mães não gostavam de Gervásio.
As crianças saíam do parque chorando quando ele estava perto. Dizia para elas
que não eram astronautas, cavaleiros, ou super-heróis. Pisava em tudo,
espalhava os brinquedos, pois só via areia e plástico sem serventia.
Sua mãe o levou a
vários médicos. Déficit de atenção, autismo, quem sabe algum retardo no
desenvolvimento. Até que um médico chegou por fim a uma conclusão:
- Seu filho é
perfeitamente normal. Ele só não tem imaginação.
Gervásio ia bem no
colégio, como qualquer criança de sua idade. Mas nas aulas de desenho, ele
riscava o papel sem propósito. Às vezes pintava uma folha inteira de uma cor
só. A professora tentava dar uma forcinha:
- Que lindo pôr do sol
você fez aqui, Gervásio!
- Não, é só uma folha
de papel pintada de vermelho.
Foi assim até chegar ao
Ensino Médio. Ele ia bem em Física, Química, Matemática. Mesmo em História e
Geografia ele ia bem. Em Português, adorava Análise Sintática. O problema era a
aula de redação. Gervásio entregava sempre uma folha em branco. A professora
conversou com Gerusa na reunião de pais:
- Algum problema em
casa?
- Nenhum. O Gervásio só
não tem imaginação.
Quando Gervásio foi
prestar o vestibular, Gerusa sugeriu que seu filho fizesse matemática, pois
acreditava que a falta de imaginação não ia ser um problema. Ledo engano. Gervásio fez o curso até o fim,
com ótimas notas. Só precisava fazer o trabalho final para pegar o diploma. Mas
desapontou. Gervásio tinha uma ótima memória, mas não a imaginação para
encontrar um assunto, ou criar uma solução nova para um problema antigo.
Gervásio era uma rua sem saída, e nunca conseguiu se formar.
Gervásio conseguiu um
emprego numa firma. Porém nunca saiu do mesmo trabalho. Era muito eficiente,
mas nas primeiras reuniões, sempre que perguntado, não sabia o que dizer para
aumentar as vendas. Logo começaram a não mais chamá-lo. E enquanto seus colegas
angariavam novas posições, Gervásio continuava na mesma mesa, em seu trabalho
organizado e metódico.
Gervásio não tinha uma
música favorita, não lia romances, não tinha namoradas. Seus gostos se resumiam
àquilo que lia nas revistas ou ao que as pessoas lhe diziam que era bom.
Gervásio não tinha time
de futebol, nem discutia sobre política. Ia à missa por que diziam que era
importante ter uma religião. Mas ali se sentava, sem ouvir o que o padre dizia,
repetia o que escutava e no final dizia “amém”.
Nunca foi a uma
passeata, não era a favor nem contra a revolução de costumes. Só gostava de
algo quando todos já concordavam com ela.
Nunca amou. Mas também
nunca odiou ninguém. Pagava todos os seus impostos, era um bom cidadão. Quando
os militares vieram, Gervásio aceitou que a revolução viera para salvar a
pátria, pois todos a apoiavam. Concordou com o combate aos terroristas, e que a
tortura era necessária, pois todos assim pensavam. E quando a ditadura acabou,
Gervásio repetia o que todos diziam, que a ditadura era algo muito, muito errado,
e que a democracia era a solução.
Foi da direita, porque
todos eram. Votou nos populistas, porque todos votaram, e quis o impeachment,
porque todos queriam. Votou na esquerda quando todos, por fim desapontados, diziam
que a esquerda era a solução, mas não sabia se era contra ou a favor dos
programas sociais, porque nem todos gostavam. Sempre com a maioria, Gervásio era
a favor do direito das mulheres quando todos já eram, e contra um beijo gay na
televisão, já que todos se enojavam. Mas dava bom dia para o casal de homens
vizinho do seu apartamento, já que todos também davam bom dia.
Um belo dia, Gervásio
se foi. Gervásio já estava velhinho. O casal gay foi no seu enterro. Pobre
Gervásio. As nuvens, nas quais nunca vira castelos, encobriam o cemitério neste
dia. Jogaram algumas rosas em seu túmulo. As mesmas rosas que Gervásio nunca
oferecera a alguém, pois via nelas somente flores, e não paixões.
Voltando para casa, o
casal se perguntava se alguma vez Gervásio havia vivido.
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