Pirei no Conto

Pirei no Conto

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Conto Convidado: As Putas da "Mia" Rua

 De Fabrício Hundou



A minha rua é geometricamente perfeita. O asfalto é pouco desgastado. Ao longo dos seus 489 metros, sem sobrar ou faltar, há três quebra-molas estufados, afastados simetricamente um do outro. As casas têm portões da mesma idade que os primeiros moradores que, naturalmente, já descansam em algum cemitério de portões enferrujados. Os telhados, em sua maioria, estão sutilmente mofados de um verde de tom qualquer, mas algum dia foram telhas avermelhadas, assim como os lábios das putas que passam em minha rua, precisamente às 21Hrs, sem sobrar ou faltar. Na esquina, há dois postes magros de luzes amarelas que iluminam os telhados avermelhados - que agora ficam alaranjados -, cruzando sombras projetadas pelos sacos de lixos que ali exalam a decomposição. Voltando à rua, defronte à casa 36, bem no umbigo sujo da rua, onde moram Dona Graça e suas filhas mães solteiras, há um gato siamês que mia em busca de uma gata no cio. Quão sujo é esse ato, gato! Sob às luzes anêmicas, as putas de corpos geometricamente imperfeitos estão na esquina, forçando o cio, exalando a límpida rotina, mantendo a graça que não aparece nas sombras. Os seus joelhos enferrujados se estufam, hasteando os ossos simetricamente desgastados pela falta, falta de luz na carne. Os homens altos e magros cruzam olhares com a cor de um verde qualquer. Faltam e não sobram cédulas verdes, cédulas assim não existem mais, mas as putas continuam com o mesmo valor. Não há gatos siameses, tampouco vira-latas. Não há latas, entretanto, no asfalto da minha rua há ferrugem nos pequenos pregos que caíram de alguma cruz. São três putas, são 3Hrs da manhã, os quebra-molas iluminam a volta das putas que são filhas de alguma cruz. Voltando à minha rua as putas gritam "chispa" ao gato que gira geometricamente frustrado em círculos, sem ter achado alguma gata no cio. Tantos bêbados gritaram "chispa", na frugal tentativa de espantar as 7 prestações de vidas das putas puras. Sem frustrações, miam alto girando a base de seus batons avermelhados, indo ao descanso de seus lençóis amarelados pela luz da minha rua que as perseguem com obstinação. Chispa, putas! A minha lua é geometricamente perfeita e a minha rua descansa, sem miados, em uma calma oração."


Contista convidado: Fabrício Hundou

Fabrício Hundou é um jovem brasiliense de 21 anos, a quem a escrita chamou a atenção desde a infância, por influência materna. Culto e educado, é também alguém muito irreverente e extrovertido. Participa do Lounge Poético que acontece todas as terças-feiras no Balaio Café, na 201 Norte, e tem alguns de seus contos publicados no site Hierophant.

Pirei no Conto - O que inspirou você a se tornar um escritor?

Hundou - Nos anos noventa, minha mãe tinha um livro de poesias, de folhas bem amareladas, e eu o adorava, simplesmente pela capa ser um violoncelo preenchido por rosas. Na infância, fui uma criança muito criativa, porém conversava pouco. Na escola, ao fazer redações, era muito hiperbólico, muitos professores me podavam. Por anos, tive o hábito estranho de ler o dicionário Aurélio. Extraía palavras complicadas e rebuscadas, anotava o significado e tentava inseri-las no meu quotidiano. Quando entrei na adolescência, conheci a internet. Fiz um blogóide aos 14 anos de idade onde publicava textos breves, mas com rimas. Tenho furtiva intimidade com as palavras: esperança, saudade, sonho, tempo e vida. Todavia, não posso levar estas como resumo de meus influxos, eis que mesmo o silêncio pode ser inspirador. 

Pirei no Conto - Qual foi a inspiração para escrever As Putas da "Mia" Rua?

Hundou - No auge da madrugada, por volta de quatro horas da manhã, alguns gatos em minha rua realmente estavam no cio e os sons eram estridentes. Isso me fez perder o sono. Peguei o computador e comecei a digitar. De repente, o computador desliga por falta de bateria. Ao religar, tudo o que eu tinha escrito tinha sido perdido. Tive um surto de desgosto. Após os suspiros, forcei a memória e comecei a reescrevê-lo. Num cômico devaneio comparei os felinos de rua às garotas de programa, depositando muita pejoratividade e escárnio, implementando vozes sociais, crítica e poesia. Foi inesquecível como se deu esse conto.

Pirei no Conto - Como funciona para você o processo de escrita?


Hundou - Escrevo simultaneamente fazendo revisões, e me vigio para reler sempre. Porque muitas vezes sou um pai irresponsável: nem tudo o que crio quero voltar a ver. O único porém é que, quando releio, sempre quero alterar algo. E nesse segundo momento eu me freio para não alterar nada:  uma vez que escrevo, escrito está.  Aquele momento torna-se singular, um registro temporal. Incontáveis foram as vezes que reli algo e não me reconheci, questionei quem seria. Alguns acontecimentos me auxiliam na criação de um texto - ora seja a depressão emocional, ora sejam os miados dos gatos na rua. Uma frase ou palavra podem me dissolver por inteiro. Gosto de buscar coesão e pouca incoerência. Creio que isso tem trazido uma identidade à minha forma de escrever.  Não tenho uma rotina para esse meu lado, por vez, há muita rebeldia. Posso acordar de madrugada, abrir o computador ou pegar uma caneta e anotar. Posso estar no trânsito, guardar em pensamento e depois de muito tempo desenvolver. 

Pirei no Conto - Quais são os autores que você admira e que influenciam seu trabalho?

Hundou - Desde que ingressei na faculdade, perdi o hábito da literatura. Portanto, as influências estão mofadas. Gosto muito de Viviane Mosé que traz uma incrível perspectiva de filosofia e psicanálise, uma releitura nietzscheana. Gostei muito de Clarice Lispector. O sarcasmo niilista de Fiodór Dostoiévski e o puro infeliz romance de Caio Fernando Abreu me resumem.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A Onça

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                Anísia estava com a pulga atrás da orelha. A maneira como Vitório vinha lhe tratando ultimamente chega já estava irritando. Era um tal amor que vamos combinar: boa coisa não podia ser. Um homem bronco daqueles inventava de trazer flores, de dar beijinho no cangote, de encostar o pezinho frio no dela debaixo da coberta. Ah, mas ele ia ver.
               Um belo dia ele saiu para o bar, Anísia foi atrás. De soslaio, como quem não quer nada, a bolsinha de compra debaixo do braço, qualquer coisa dizia que estava indo para o mercado. Àquela hora? Pois é, se não fosse ela, a geladeira vivia vazia, não tinha nem para as visitas.
                Mas a discussão não foi necessária. Aquele homem estava tão entretido no seu caminho, que nem percebeu a presença dela. Anísia só sentia o sangue quente subindo para a cabeça, a mãozinha fechando num soco. Ora.
                Vitório agora assobiava. O passo macio, bem pedante. Mas como tava apresentado! Parou em frente a uma porta, bateu duas vezes. Abriu uma quenga muito da desavergonhada, flor no cabelo, o lábio pintado de vermelho, perfume que chega empesteava. Havia de pensar que era incenso, para sair perfumando o ambiente por aí. Deu um beijinho no rosto, e puxou ele para dentro.
                Anísia deu um pulo, jogou a quenga para o lado, Vitório para o outro.
                - Mulher, cê tá louca? – surpreendeu-se Vitório.
             Mas Anísia não queria saber. Deu um safanão na sacripanta, rasgou o vestido, e se agarrou no pescoço da pobre, que começou a sufocar – “me largue, sua louca!”, “Então deixe meu homem em paz.” A quenga desdenhou: “Quem manda não cuidar do seu macho?”.
                Outro safanão, saiu sangue, o cabelo comprido agora na mão de Anísia.
                - Repete se tu é mulher!
                - Me larga, sua cachorra!
                - Cachorra é você, que não respeita o homem das outras!
                Vitório tentou se afastar de mansinho, mas Anísia percebeu.
                - Volte aqui, seu cabra! Que tu não é homem!
               Vitório podia ser safado, mas era cabra macho. Não ia levar desaforo da mulher. Mas quando já ia dar o primeiro tabefe, Anísia foi mais rápida. Agarrou foi logo seus bagos.
                - Vai! Tu não é homem? Vem bater! Te arranco tua macheza é agora!
                E apertava mais ainda.
                - Oh, meu amorzinho! Vamo, me largue, minha cabritinha!
                Depois desse dia, Vitório nunca mais foi para o bar, e perdeu os amigos. Pois toda a vez que saía na rua, alguém dizia: “Essa onça agora mia!”.
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Blogueiro convidado: Daniel Couri

Daniel Couri é um cara super simpático e humilde, como um bom mineiro de Muriaé.

Jornalista de bom faro, percebeu que não havia nada escrito sobre o grupo ABBA no Brasil, sendo o autor da primeira biografia do grupo em língua portuguesa, "Made in Suécia - O paraíso pop do ABBA" (Editora Página Nova, 2008).

Posteriormente, a biografia foi revisada e ampliada, resultando no livro "Mamma Mia!" (Panda Books, 2011), lançada no ano em que o musical de mesmo nome estreava no Brasil com grande sucesso.

Na capital federal há mais de dez anos, formou-se no CEUB e trabalhou em sites inovadores da cidade como o "Candango", e atualmente é roteirista de uma produtora brasiliense.

Escreve o blog Porcos, Elefantes e Doninhas - onde coloca sua visão aguçada sobre o lado "B", e muitas vezes desconhecido e curioso, da cultura pop dos anos 70 em diante.


Pirei no Conto - O que inspirou você a escrever uma biografia sobre o ABBA?

Couri - O que me inspirou foi o gosto pelo ABBA mesmo, meu interesse e curiosidade crescentes. Desde a adolescência, fui pesquisando e acumulando informações sobre o ABBA. Livros, sites, depoimentos, recortes, vídeos, tudo. Depois de alguns anos, percebi que, com o volume de material que eu havia escrito (por hobby mesmo), dava pra fazer um livro. O primeiro, "Made in Suécia - O Paraíso Pop do ABBA", foi publicado em 2008 pela editora Página Nova. Foi a primeira biografia do grupo em português. Até então, não existia nenhum livro sobre o ABBA no Brasil, traduzido ou publicado. Em 2010, a Panda Books me procurou e perguntou se eu não estava interessado em escrever outro, dando destaque ao musical "Mamma Mia!", cuja montagem brasileira ia estrear em São Paulo naquele ano. Topei e, em 2011, foi lançado o "Mamma Mia!" - mesmo nome do musical - com ainda mais informações, detalhes e curiosidades.

Pirei no Conto - Você teve ajuda de fãs do mundo inteiro, e do biógrafo do ABBA na Suécia. Como foi o processo de elaboração dos livros com essas parcerias?

Couri -  A ajuda de fãs e colecionadores europeus foi fundamental. Encontrei pessoas muito bacanas e generosas, que contribuíram com material fotográfico e informações. Carl Magnus Palm, o biógrafo do ABBA, também foi extremamente gentil e me respondeu várias perguntas, tirou dúvidas. Ele tem vários livros publicados sobre o ABBA. Ano passado, pela primeira vez, um livro dele foi traduzido para o português e lançado aqui no Brasil, "ABBA - A Biografia". Fico feliz que meu livro tenha aberto o caminho para outros livros sobre o ABBA que foram depois traduzidos e lançados no Brasil também.


Pirei no Conto - Qual o tema do blog "Porcos, Elefantes e Doninhas"? O que o motiva a escrevê-lo?

Couri - O tema do meu blog  são as coisas 'esquisitas' que curto. Músicas antigas, filmes antigos e/ou pouco conhecidos, livros, um poco de comportamento e temas ligados à nostalgia. Muitas daquelas coisas sobre as quais escrevo são meio obscuras ou pouco divulgadas. (No próprio blog tem uma explicação sobre o nome). Algumas vezes coincide de eu escrever sobre alguma coisa que volta à tona (como algumas novelas do canal Viva, por exemplo), mas no geral, escrevo sobre uma cultura pop mais "esquisita" e obscura (risos).

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Nosso próximo convidado será o contista Fabrício Hundou. Além de novos contos, toda semana!



quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Quem Disse, Berenice?


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            Quando Juvenal viu aquela menina no shopping, em um fim de semana, olhando um cartaz em frente ao cinema, logo percebeu que aquele era o amor da sua vida. Só precisava conhecê-la melhor, se apresentar, e ela logo saberia que ambos estavam destinados a passar junto o resto de suas vidas.
            Logo chegou uma amiga, que a chamou de Ana Júlia. Ana Júlia. Sonoro como aquela música, de qual grupo era mesmo aquela música? Mas Juvenal não pôde pensar muito, as duas amigas já se dirigiam para a bilheteria, e Juvenal, sem perder tempo, logo se postou atrás delas na fila, para saber a que filme iriam assistir.
            Pediram duas meias para o filme do Homem de Ferro, vejam só, tinham isso em comum, ele também gostava do Homem de Ferro! Logo comprou sua entrada, e enquanto as duas escolhiam seu lugar, Juvenal postou-se duas fileiras atrás. Distante o suficiente para que o coraçãozinho dela não se assustasse – imagine se ela pensasse que ele era um destes perseguidores? – e perto o suficiente para usufruir da sua beleza, ela que logo, logo, saberia de seu destino nato com ele.
            Ana Júlia tinha cabelos curtos, negros, olhos castanhos, a pele amorenada, o nariz pequeno e sardento, pequena e magra, enfim, como dizem, um tipo mignon. E Juvenal lembrou-se da meia-entrada, era estudante! Uma menina inteligente, provavelmente a primeira da classe! O coração de Juvenal palpitava com sua pequena amada, ali tão perto, ele já tão sabido dela!
            Após o cinema, Juvenal, de longe, acompanhou quando ela saiu do cinema e foi com a amiga pegar o ônibus. A amiga desceu no seu ponto, e Juvenal acompanhou Ana Júlia até sua casa. Após sair do ônibus, ela dobrou uma rua e entrou em um bloco de apartamentos. Juvenal ficou aguardando do lado de fora para ver se ela apareceria na janela. Uma luz se ligou no terceiro andar, e por um átimo de segundo Juvenal pôde vê-la, antes que ela cerrasse a cortina.
            Juvenal passou a acompanhá-la todos os dias. Soube que ela gostava de verde, que tinha um poodle, que às vezes andava descalça na grama, e que tinha vergonha de mostrar as pernas, e por isso só andava de calça.
            E descobriu também que Ana Júlia tinha um noivo. Um noivo! Mas Juvenal compreendia as razões de Ana Júlia. Tão desesperançada, apenas noivara para não ficar sozinha, claro! Logo, logo ele se declarava, e obviamente Ana Júlia terminaria o noivado!
            Mas não era só Juvenal que estava apaixonado por Ana Júlia. Também havia alguém que havia se apaixonado por Juvenal.
            Sem que ele desconfiasse, a loira Berenice também vira Juvenal em frente ao cinema, e se encantara com o moço. E também Berenice começou a observar Juvenal, seguindo-o astutamente de longe diariamente.
            Berenice logo percebeu quem era a paixão de Juvenal.  E teve uma ideia.
            Enquanto isso, Juvenal soube que Ana Júlia havia marcado a data do casamento. Sem mais tempo, ele precisava evitar que ela estragasse a sua vida!
            Desajeitadamente, Juvenal levou algumas flores para Ana. Foi até seu prédio, e pediu ao porteiro que apertasse o botão de seu andar. Mas Ana Júlia não quis atender, claro, ainda não o conhecia, a pobrezinha.
            Juvenal ficou no meio da rua, sem saber o que fazer, até que viu um carro saindo da garagem! Era a chance de Juvenal entrar no prédio, declarar-se a Ana, e tirá-la de um casamento destinado à infelicidade.
            Porém Juvenal não contava com a presença da câmera de segurança do prédio. O porteiro logo viu o doidinho entrando na garagem, e avisou imediatamente os pais de Ana Júlia, enquanto ligava para a polícia.
            Pobre Juvenal! Um soco no rosto, as flores ao chão, a polícia algemando-o, e nem pôde declarar o seu tão profundo amor.
            Mas eis que, quando Juvenal saiu da delegacia, depois de passar uma noite no xadrez, quem ele vê não é Ana Júlia? Toda à sua espera, com a camisa verde, o cabelo negro e curto, enfiada em calças compridas, passeando com os pés nus no gramado, acompanhada de seu fiel cachorrinho?
            Juvenal aproximou-se rapidamente, antes que aquela imagem se desvanecesse como se miragem fosse, encontrando junto ao seu abraço a carne e o osso de seus desejos!
            Mas era Berenice.
            Berenice podia ter lá suas manias, como perseguir um estranho completo na rua, mas inteligente ela era: percebeu que era parecida com Ana Júlia, pequena e magrinha, até o rosto era igual. Então cortou o cabelo, tingiu de escuro, comprou um poodle, tirou a calça e uma camisa verde da gaveta, e enfim fisgou Juvenal.
            Claro que Juvenal percebeu depois do beijo que ela era Berenice, ele era meio maluco, mas não tapado. Porém muito exigente: foram felizes para sempre, até o dia em que Berenice se esqueceu de retocar as raízes dos cabelos.
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Pirando no Conto

Por que pirar no conto? Pra não pirar na vida. Pra ver pelos olhos de uma criança de novo, e perceber tudo pela primeira vez e ficar intrigado. Por que tudo que vemos tem uma história, e ela é mais profunda, estranha e bela do que percebemos inicialmente. Se eu puder dar uma fagulhazinha disso pra vocês, já estou satisfeito. Escrever pra mim é necessidade, e espero que pra vocês seja tão gostoso ler quanto foi pra mim escrever. Isso é tudo.

Beijão grande de Brasília, desse céu sempre anil, emoldurado pelas árvores belas e tortuosas do Cerrado! Evoé!

O Homem Sem Imaginação


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            Gervásio era um homem sem imaginação.
             Já quando era criança, dona Gerusa, sua mãe, percebia que Gervásio era diferente das outras crianças. O primeiro susto foi quando completou um ano de idade. Em vez de dizer “mamãe”, a primeira palavra de Gervásio foi “não”.
             Sua mãe parou de levá-lo ao parquinho do bairro, pois as outras mães não gostavam de Gervásio. As crianças saíam do parque chorando quando ele estava perto. Dizia para elas que não eram astronautas, cavaleiros, ou super-heróis. Pisava em tudo, espalhava os brinquedos, pois só via areia e plástico sem serventia.
               Sua mãe o levou a vários médicos. Déficit de atenção, autismo, quem sabe algum retardo no desenvolvimento. Até que um médico chegou por fim a uma conclusão:
              - Seu filho é perfeitamente normal. Ele só não tem imaginação.
              Gervásio ia bem no colégio, como qualquer criança de sua idade. Mas nas aulas de desenho, ele riscava o papel sem propósito. Às vezes pintava uma folha inteira de uma cor só. A professora tentava dar uma forcinha:
               - Que lindo pôr do sol você fez aqui, Gervásio!
               - Não, é só uma folha de papel pintada de vermelho.
              Foi assim até chegar ao Ensino Médio. Ele ia bem em Física, Química, Matemática. Mesmo em História e Geografia ele ia bem. Em Português, adorava Análise Sintática. O problema era a aula de redação. Gervásio entregava sempre uma folha em branco. A professora conversou com Gerusa na reunião de pais:
               - Algum problema em casa?
               - Nenhum. O Gervásio só não tem imaginação.
               Quando Gervásio foi prestar o vestibular, Gerusa sugeriu que seu filho fizesse matemática, pois acreditava que a falta de imaginação não ia ser um problema.  Ledo engano. Gervásio fez o curso até o fim, com ótimas notas. Só precisava fazer o trabalho final para pegar o diploma. Mas desapontou. Gervásio tinha uma ótima memória, mas não a imaginação para encontrar um assunto, ou criar uma solução nova para um problema antigo. Gervásio era uma rua sem saída, e nunca conseguiu se formar.
                Gervásio conseguiu um emprego numa firma. Porém nunca saiu do mesmo trabalho. Era muito eficiente, mas nas primeiras reuniões, sempre que perguntado, não sabia o que dizer para aumentar as vendas. Logo começaram a não mais chamá-lo. E enquanto seus colegas angariavam novas posições, Gervásio continuava na mesma mesa, em seu trabalho organizado e metódico.
               Gervásio não tinha uma música favorita, não lia romances, não tinha namoradas. Seus gostos se resumiam àquilo que lia nas revistas ou ao que as pessoas lhe diziam que era bom.
                Gervásio não tinha time de futebol, nem discutia sobre política. Ia à missa por que diziam que era importante ter uma religião. Mas ali se sentava, sem ouvir o que o padre dizia, repetia o que escutava e no final dizia “amém”.
                Nunca foi a uma passeata, não era a favor nem contra a revolução de costumes. Só gostava de algo quando todos já concordavam com ela.
                Nunca amou. Mas também nunca odiou ninguém. Pagava todos os seus impostos, era um bom cidadão. Quando os militares vieram, Gervásio aceitou que a revolução viera para salvar a pátria, pois todos a apoiavam. Concordou com o combate aos terroristas, e que a tortura era necessária, pois todos assim pensavam. E quando a ditadura acabou, Gervásio repetia o que todos diziam, que a ditadura era algo muito, muito errado, e que a democracia era a solução.
                Foi da direita, porque todos eram. Votou nos populistas, porque todos votaram, e quis o impeachment, porque todos queriam. Votou na esquerda quando todos, por fim desapontados, diziam que a esquerda era a solução, mas não sabia se era contra ou a favor dos programas sociais, porque nem todos gostavam. Sempre com a maioria, Gervásio era a favor do direito das mulheres quando todos já eram, e contra um beijo gay na televisão, já que todos se enojavam. Mas dava bom dia para o casal de homens vizinho do seu apartamento, já que todos também davam bom dia.
                Um belo dia, Gervásio se foi. Gervásio já estava velhinho. O casal gay foi no seu enterro. Pobre Gervásio. As nuvens, nas quais nunca vira castelos, encobriam o cemitério neste dia. Jogaram algumas rosas em seu túmulo. As mesmas rosas que Gervásio nunca oferecera a alguém, pois via nelas somente flores, e não paixões.
                Voltando para casa, o casal se perguntava se alguma vez Gervásio havia vivido.