Pirei no Conto

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terça-feira, 7 de abril de 2015

A Maçã Dourada


Resultado de imagem para maçã de ouro imagemGetúlio acordou um dia com um gosto estranho na boca. Havia sonhado que sua esposa oferecia sua refeição preferida, um bom filé acebolado. Mas quando pensava em pôr no garfo um pedaço da iguaria, já de água na boca, a carne à sua frente ganhava uma cor amarelada e brilhante: era agora de ouro. Duvidando do que seus olhos viam, pegava o pedaço de carne com as mãos, metendo os dentes e quebrando-os todos. Caía da cadeira de tanta dor. O velho aposentado acabava no chão, gemendo. E com as mãos trêmulas, punha a mão à boca maldizendo a própria sorte.

Ainda pensando naquele estranho sonho, desceu as escadas, e tomou o café com sua mulher, Eulália. Antes de ir trabalhar - na lojinha em que tinha transformado sua garagem, onde consertava os sapatos da vizinhança - deu uma olhada pela janela da cozinha para a velha macieira do quintal. Viu algo reluzindo em um dos galhos. Resolveu dar uma olhada mais de perto.

Quando chegou mais próximo, ficou boquiaberto. Chamou a esposa, que só respondeu depois de resmungar algumas vezes. Sempre ele a chamava para ver algo a que não tinha interesse, como uma nova ferramenta para consertar os solados dos sapatos. Veio de má vontade. Mas deu um grito quando viu àquilo a que o marido apontava.

Era uma maçã de ouro.

Colheram-na da árvore como se fosse quebrar ao toque. Esfregaram um pouco a superfície. Algum moleque da rua havia pintado ela com spray dourado, só para caçoar dos dois? Mas não, não era tinta, e pesava como chumbo.

“O que a gente faz agora?”

“Liga pro Daniel”, disse Eulália. “Ele deve conhecer alguém que pode ajudar a gente.”

Daniel riu quando ouviu o pai ao telefone. De mau humor, desligou o telefone. Achou que aquela história toda era carência dos dois, sempre buscando atenção.

                Mas depois ficou preocupado. Deixou um pouco de lado o relatório do banco, e ligou para as irmãs. Será que havia algo acontecendo com seus pais? Ligou para a irmã mais velha. Precisavam ir à casa dos dois aquela noite.  Ângela reclamou, não tinha com quem deixar os filhos. Daniel disse para ela largar os filhos com o marido. Ressabiada, ela concordou.

“Esse marido da Ângela ainda vai nos dar problemas” – pensou.

                Já a Glória era professora de yoga, teve de esperar a aula acabar para ligar. Quando atendeu, Glória não parou de falar, culpando Daniel por não visitar os pais com mais frequência. Daniel só não perdeu a paciência por praticidade: precisava reunir os irmãos e ponto. Por fim, após ouvir todas as reclamações, terminou o diálogo com um seco “nos encontramos lá.” E arrematou:

                - Nada de atrasos.

                Daniel e Angelina chegaram quase ao mesmo tempo. Só Glória chegou atrasada. Em geral, sempre culpava o fato de morar mais longe que os irmãos, fazendo-se de vítima.

                Por essa razão, Glória já entrou falando, apressada: “Então, Daniel, que te preocupa tanto? Você devia fazer um retiro comigo para deixar de ser tão ansioso, sabe, acho que...”

                Mas Daniel estava quieto, sentado no sofá da sala com a maçã brilhando em suas mãos. Ângela, de pé ao lado da mãe, dizia que era um milagre, fazendo o sinal da cruz. Já Eulália segurava seu rosário, um tanto incomodada com a proximidade da filha. Glória aproximou-se muda, sentando-se ao lado de Daniel, observando atenta àquele fruto estranho. O pai, Getúlio, encostado na janela, observava toda a cena, fumando ali um cigarro e soltando a fumaça em direção ao quintal.

                “É de ouro?” – por fim perguntou Glória.

                 “O que a gente faz?”, cortou Getúlio.

                “Tem que avaliar” – adiantou-se Ângela, surpreendendo a todos, pois quase nunca falava nas reuniões de família.

                “Como assim, mana?” – os olhos de Glória brilharam.

                “É só levar num joalheiro. Se for mesmo de ouro, ele vai confirmar”, disse enquanto caminhava em direção ao pai. Pediu-lhe um trago do cigarro. “Graças a Deus! Quase nunca dá para fumar em casa. O Castilho não deixa.”

                Castilho era o marido de Ângela. “Aliás, deixa eu ligar pra ele”, anunciou, tirando o celular do bolso e digitando o número.

                “Minha filha, não leve o nome de Deus em vão!”, reprovou Eulália, as sobrancelhas franzidas.

                “Que tem de mais, mamãe? Deus perdoa isso. Ele tem mais com que se preocupar.”

                “É o que diz aquele seu pastor?”

                “Chega, amor!” – respondeu firme Getúlio. Também reprovava a religião da filha, eram católicos. Mas não gostava de discussões. “E você, Ângela, nada de ligar para o Castilho. Não é hora ainda. Levamos a maçã para a avaliação em um joalheiro, depois decidimos. Você pode levar, Daniel?”

                “Ei, eu é que dei a ideia, eu é que devia levar isso!”, esbravejou Ângela.

                “Daniel, pode levar isso?”, perguntou Getúlio como se não tivesse ouvido a filha.

                “Posso sim, pai. Amanhã mesmo procuro um lugar para a avaliação.”

               Ângela olhou cúmplice para Glória, que devolveu o olhar. Sempre reclamavam que Daniel era o preferido do pai. Glória mal tinha terminado o colegial, mas Ângela tinha uma impressionante carreira acadêmica, e era professora numa famosa faculdade de matemática e estatística. O pai, porém, mal mencionava isso quando se encontravam, deixando-a em dúvida  se na cabeça machista de seu pai o problema era ser mulher e ter uma carreira, ou apenas ser mulher.

                No dia seguinte, Daniel saiu mais cedo do trabalho, dando como desculpa um compromisso familiar. Correu até sua casa, subiu em uma cadeira para alcançar a parte de cima do armário do quarto, e tentou encontrar apalpando uma determinada caixa de sapatos.  Não conseguindo encontrar, tentou aproximar mais o braço do fundo do armário, desequilibrando-se da cadeira, e por pouco não caindo ao chão.

                “Seria bem merecido se você caísse da cadeira” – afirmou Helena, sua esposa, na entrada do quarto, surpreendendo Daniel. Em suas mãos, a caixa de sapatos. “Encontrei isso hoje de manhã, quando colocava o edredom lá em cima. O que é isso?”

                Enquanto falava, Helena abria a caixa, revelando o pomo de ouro.

                - Meu bem, eu ia te contar.

                - Contar o quê? Isso é algum tipo de enfeite?

                - Não, meu amor, veja bem – Daniel pegou a caixa das mãos de Helena. Enquanto isso, segurava sua outra mão, levando-a delicadamente a sentar-se na cama ao seu lado – isso, isso é real. Provavelmente de ouro puro.

                - Mas como assim, de ouro puro?

                No entanto, em vez de responder, Daniel rapidamente levantou-se levando a caixa com o fruto dourado, dirigindo-se à porta.

                - Explico pra você mais tarde.

                Helena ainda tentou correr até a porta, mas Daniel rapidamente saiu de casa, antes que Helena pudesse alcançá-lo.

                Naquela noite, Daniel fez Helena prometer segredo sobre o que vira, sob a condição de ir com ele ao próximo encontro dos irmãos.

                Na noite seguinte, quando todos chegaram, Glória já estava sentada no sofá, esperando a todos. Tomava um café com os pais na sala, e parecia um tanto nervosa. Ângela trouxera o marido: se Daniel podia, ela também.

                Mas antes que Daniel pudesse falar qualquer coisa, o pai o chamou para fora:

                - Meu filho, olha só isso.

                Quando Daniel aproximou-se da macieira, pôde perceber que a árvore estava cheia de novos frutos, dourados como o anterior.

                - Mas não é possível.

                - Mas aconteceu, meu filho.

                - Então vocês estão ricos.

                O pai permaneceu por alguns instantes surpreso. Então era verdade! Quis falar com o filho, mas Daniel já entrara novamente na casa.

                Ao entrar na sala, Daniel tirou o fruto da caixa, mostrando-o a todos com certa dramaticidade, enquanto os olhares pousavam naquele objeto com um misto de temor e cobiça.

                - Boa noite a todos. Estive na joalheria ontem à tarde, e me confirmaram: esse fruto é mesmo de ouro puro. Tenho mais uma surpresa para vocês: a árvore do papai deu novos frutos hoje. Cabe aos nossos pais decidir o destino destas maçãs.

                Getúlio logo respondeu:

                - Meu filho, eu e sua mãe estamos velhos. Só precisamos de uma vida confortável. Vamos dividir esses frutos igualmente, entre nós e vocês. E quando eu e sua mãe morrermos, vocês ficam com tudo. Agora vamos todos ter uma vida confortável, sem problemas.

                Ansiosa, e sem se conter de alegria, Eulália chamou a todos:

                - Venham, minhas crianças, vamos dar uma olhada naquela árvore de perto, e já dividir agora essas maçãs!

                Castilho, o marido de Ângela, permaneceu sentado na sala, enquanto todos saíam. Curioso com tudo aquilo, pegou o fruto que Daniel deixara sobre a mesa. Mas ao tocá-lo, o pomo se partiu em dois. Olhou furtivamente para a janela que dava para o quintal, para se assegurar de que ninguém tinha visto, estava com medo de ter estragado a maçã. Mas ao tentar juntar as duas partes, algo escapuliu de dentro. Pegou entre o polegar e o indicador aquela coisa pequena e amarronzada, e verificou tratar-se de uma semente.

                Repentinamente, alguém adentrou ao recinto. Era Ângela.

                - Amor, você não vem?

                Castilho colocou discreta e rapidamente a pequena semente em seu bolso, sem que Ângela visse, e seguiu-a.



                             *                                 *                                    *

               

Muitos anos se passaram.

                Getúlio desceu as escadas como de costume, e antes de tomar o café, beijou Eulália.

                - Bom dia, esposa.

                Getúlio apresentava um ar cansado, como se o peso do mundo estivesse em suas costas, contrastando com aquela pessoa de sempre, disposta ao trabalho matinal.

                Eulália passou a Getúlio uma xícara de café quente. Ele sorveu um pouco do café, levantando em seguida da cadeira, procurando o jornal.

                - Está debaixo daquela maçã. Estava ventando demais. Precisamos consertar essa janela.

                Displicentemente, Getúlio pegou o jornal, sem ligar para a maçã dourada. A vidraça da janela, quebrada, deixava entrar o ar frio da manhã.

                Eulália completou a xícara do marido, com um bule feito de ouro. Na mesa, não só o bule, mas os talheres eram também do mesmo material.   

- Disseram que chegou arroz no mercado do centro – disse Eulália um tanto preocupada.

                - Mas você não tinha em estoque, bem?

                - Mas já acabou. Não consegui comprar antes de acabar.

                - Vou dar mais dinheiro pra você. Deve estar mais caro.

                - Vou sair logo cedo. Já deve ter fila essa hora. – respondeu Eulália, enquanto procurava a bolsa dentro do armário da cozinha. As portas do móvel eram de ouro, e ao abri-las, encontrou sua bolsa.

                Getúlio dirigiu-se até a garagem. Abriu com dificuldade a porta, que estava emperrada. Puxou uma gaveta na velha mesinha. Dentro da gaveta, tirou pequeninas barras de ouro, com um selo da Casa da Moeda, e o peso em gramas. Pôs tudo numa sacola de plástico, dessas de supermercado, voltou à cozinha e entregou a Eulália.

                - É tudo que tenho, amor. Não tem vindo muita gente pra lojinha. Deve ser a carestia.

                - Não esquece de desligar o fogão. O leite deve estar quase fervendo.

                Enquanto Eulália colocava as barras de ouro dentro da bolsa, Getúlio aproximou-se do fogão, onde o leite estava esquentando. Tanto o fogão quanto a leiteira eram também de ouro.

                Getúlio observou pela janela a mulher se afastar, descendo a rua, emoldurada pelos dois lados com carreiras de macieiras carregadas de frutos dourados. Muitos deles espalhavam-se pelo chão, sem que ninguém se preocupasse em pegá-los. O velho senhor perguntou-se como tudo pôde mudar tanto.

                 Getúlio não sabia, mas anos antes, vendo naquela pequena semente a oportunidade de um grande negócio, Castilho entrara em contato com um antigo amigo, que na época estava tralhando em uma empresa agropecuária.

                O amigo somente acreditou na história quando Castilho lhe trouxe um dos frutos que haviam cabido a ele e a Ângela. Marcaram uma negociação com o dono da empresa, que, ainda incrédulo, disse a Castilho que estudariam a semente, oferecendo uma pequena porcentagem no caso de realmente haver lucro. O projeto permaneceria secreto, de forma a manter a imagem da empresa, caso algo desse errado.

                Novas mudas foram desenvolvidas, e depois plantadas em um terreno exclusivo para elas, com controle de quem entrasse e saísse dali. No entanto, a maior parte das plantas morreu, e as que permaneceram não deram frutos. O amigo de Castilho perdeu seu emprego, e o contrato foi desfeito.

O próprio Castilho ficou desolado: perdera o amigo e o negócio. Mas o consolava o fato de Ângela, e consequentemente ele e os filhos, terem direito a uma parte dos frutos de ouro do sogro. Ângela também não sabia nada sobre o que havia feito, portanto também não havia como ser cobrado pela esposa. Estava tudo bem.

                No entanto, alguns anos depois aquela empresa estranhamente começou a apresentar enorme lucratividade. Isso chamou a atenção da Receita Federal. Um acordo foi feito, e a empresa foi deixada em paz.

                Coincidentemente, no fim daquele ano, foi anunciada a descoberta de uma nova mina de ouro, sob responsabilidade do Governo Federal. A mina batia a cada mês sua produtividade, e o que era algo discreto, começou a chamar a atenção da sociedade civil. Alguns jornais faziam reportagens sobre o mistério que a cercava, sem que as autoridades dessem qualquer resposta razoável. A própria existência da mina era também um mistério, pois todos os geólogos concordavam que, no município onde ela estava localizada, o terreno não apresentava a menor possibilidade de se obter qualquer metal precioso. Mesmo a localização exata da extração também era vaga, e os próprios habitantes do lugar não sabiam dizer onde se encontrava. Ali só havia fazendas.

                Logo outra mina de ouro foi descoberta, e outra, e outra. A pressão dos jornais passou a tornar-se insustentável, a ponto de acusarem o governo de algum tipo de esquema fraudulento. As minas davam mais lucro que uma mina comum, em locais estranhos, com muitas plantações, onde não se via qualquer sinal de retirada de minério.

                Sentindo-se pressionado, por fim o Presidente da República resolveu fazer um pronunciamento à nação. Antes chamou os principais órgãos de imprensa do país, ao lado de especialistas, para uma visita guiada às minas. Os jornalistas se surpreenderam ao entrarem naqueles lugares, mas entendendo tanto a questão estratégica quanto a surpresa do público quanto àquela novidade, resolveram que só publicariam algo sobre o fato no dia do próprio pronunciamento.

                E no dia marcado, Getúlio foi tomado de um grande susto, quando viu de manhã, na televisão, imagens de uma gigantesca plantação de maçãs de ouro. Conversou com os filhos pelo telefone, e estes também estavam completamente surpresos. A notícia encontrava-se em todos os jornais e na internet, ressaltando que aquele seria o mesmo assunto do pronunciamento presidencial marcado para a noite.

E foi assim, no horário nobre, em cadeia de rádio e televisão, que o Presidente revelou ao país e ao mundo que as minas tratavam-se na verdade de diversas plantações de uma árvore exótica. Ela extraía partículas microscópicas de ouro existentes no subsolo. Impossíveis de serem retiradas por qualquer processo conhecido de extração, a árvore condensava-as em um fruto feito do mesmo material, sem qualquer impureza.

A notícia inicialmente abalou a todos, tomando o país de sobressalto. Muitas dúvidas se sobrepunham: engenharia genética, resultado da poluição, ou talvez de radioatividade que escapasse das usinas atômicas? Teorias surgiam e eram discutidas acaloradamente sobre a origem daquele estranho ser vivo, que de uma hora para outra resolvera produzir frutos feitos do vil metal.

A família de Getúlio ficara chocada com tudo aquilo. O segredo da macieira fora mantido por todos. Haviam melhorado de vida, mas com cuidado, para não chamar a atenção de ninguém. Aprenderam a fundir as maçãs artesanalmente na própria casa de Getúlio, transformando-as em pequenas barras de ouro, que eram depois vendidas em casas do ramo. Mas sempre de forma discreta, sem chamar a atenção.

Por fim, ficou entendido entre todos que, se uma árvore daquelas crescera no quintal de Getúlio, o mesmo tipo de planta poderia ter aparecido em outro lugar. De qualquer forma, continuavam com a mesma vida de sempre, e no caso de algum aperto financeiro, era só pegar mais uma das maçãs, que o problema estava resolvido.

Como nunca foram importunados por ninguém, passados meses do pronunciamento oficial, respiraram aliviados, e voltaram à vida normal.

Todos, menos Castilho. Inicialmente Ângela fizera vista grossa ao comportamento do marido, mas Castilho cada vez chegava mais tarde em casa, cheirando a bebida. Voltara a fumar, e começou a apresentar um comportamento depressivo tanto no trabalho quanto em casa. Era agressivo com Ângela e os filhos do casal. Começou também a se recusar a se encontrar com a família de Ângela, nunca mais indo à casa do pai dela.

Castilho sentia-se culpado por ter traído a família da esposa, e também por não ter enriquecido como esperava. Soubera do acordo do governo com aquela empresa agropecuária.  E sabia que, sim, aquela riqueza poderia ter pertencido a ele. Tanto sua ganância quanto sua incompetência envergonhavam-no frente a si mesmo, e junto à esposa e aos sogros.

Em todo o mundo, a notícia caiu como uma bomba. Jornais internacionais publicavam artigos sobre aquela estranha planta e seu monopólio. E aquele país, único produtor mundial, passava tanto a ser respeitado quanto temido.

O país enriquecia com o ouro, agora vindo de uma fonte inesgotável, controlada com mão de ferro. A primeira razão era manter o preço do ouro nos mercados internacionais em um valor alto. E a segunda razão era evitar que outras nações pudessem pôr a mão naquela planta, agora uma questão de segredo de Estado.

Mas as plantas, como sabemos, são seres vivos, com seus próprios desígnios. Além disso, o subsolo de um país é algo impossível de se transportar, mas mudas e sementes podem ser levadas numa mala.

Ainda assim, em que pese a imprevisibilidade da natureza, foi com alguma surpresa que alguns técnicos encontraram macieiras crescendo fora dos terrenos do governo, em terras vizinhas. Logo que vistas, as mudas eram imediatamente arrancadas e incendiadas, para que não se espalhassem sem o controle governamental. Mas logo algumas foram encontradas a quilômetros dali, em terras pertencentes a particulares. O pólen era levado por pássaros, ou pelo vento, criando algum tipo de hibridismo com outras plantas? Encerrada a polêmica sobre um possível roubo de sementes, os técnicos não conseguiam se decidir sobre o que provocava aquele fenômeno.

Quando o governo localizava uma destas plantas em fazendas de terceiros, primeiro tomava as terras, sob a alegação de improdutividade, visando à reforma agrária. Ou acusava de algum crime ambiental. Mas tendo em vista a possível impopularidade dessas medidas, e de forma à notícia não chegar ao grande público, começaram a ser feitas negociações com cada um dos donos, sempre sob a condição de manter segredo sobre o ocorrido.

Surpreendido ficou mesmo o governo quando soube que algumas mudas haviam sido contrabandeadas para outros países. Imediatamente foram feitas investigações, para descobrir como e quando essas mudas haviam parado no poder de algum cientista estrangeiro. Chegou-se a alguns culpados, que foram devidamente indiciados, mas tarde demais para ter evitado o pior.

Logo foi acionada a diplomacia com esses países, de forma a manter o preço do ouro em patamares lucrativos para todos. Se não pode com eles, junte-se a eles!  Acordos foram assinados, reuniões entre representantes aconteceram. Por fim chegou-se a um denominador comum, criando-se uma associação de países produtores nos moldes da OPEP.

A questão das macieiras que cresciam em terrenos sem controle federal não pôde ser mais escondida do grande público, quando algumas delas começaram a crescer no perímetro urbano de uma pequena cidade, em via pública. As pessoas colhiam afoitas as maçãs de ouro das árvores, e vendiam os frutos diretamente em troca de dinheiro.

Tropas militares foram enviadas para cercar essas plantas e eliminá-las. Porém não foi possível evitar que mais uma vez a notícia chegasse a público através da imprensa.

Os diplomatas logo tentaram diminuir o problema no fronte externo, dizendo tratar-se de uma questão pequena e já resolvida, de forma a acabar com desconfianças entre o país e seus sócios internacionais.

Esses mesmos diplomatas não desconfiavam, entretanto, que aquelas mesmas nações também enfrentavam o mesmo tipo de problema. Começaram a aparecer em jornais estrangeiros notícias aqui e ali sobre alguns incidentes com macieiras que cresciam em lugares públicos, tanto no meio rural quanto em cidades.

Algumas pessoas que tinham a sorte de colher essas maçãs perceberam que, ao tentarem escondê-las enterrando-as no quintal, uma nova planta crescia. Em pouco tempo, novos frutos eram vendidos nos ourives, sem passar pelos canais oficiais.

O mercado paralelo crescia cada vez mais, até que alguns resolveram produzir eles mesmos as maçãs, primeiro em pequenas chácaras, depois plantando em grandes fazendas.

Imediatamente o mercado do ouro sentiu o impacto desses novos produtores. Mas o preço continuava atraente para que novas pessoas continuassem a vender mais e mais maçãs.

Grandes campos de trigo, milho e soja deram espaço para plantações de macieiras. O preço dos alimentos começou a subir em todo mundo. Mas como os alimentos já estavam mais caros do que seria  o normal já há alguns anos, poucos faziam a ligação entre uma coisa e outra.

Exceto por alguns poucos economistas, que se perguntavam até quando aquilo iria durar. Mas estes eram logo taxados de profetas do apocalipse pela TV e pelos jornais, ligados a interesses do governo. Já os produtores particulares se juntavam em grandes confederações, de forma a impedir a queda abrupta do preço do ouro. O mercado do ouro se autorregulava, diziam.

Os preços dos imóveis subiam, e a prosperidade parecia aumentar em todo o mundo, sem qualquer sinal de uma crise.

Que chegou, sem qualquer aviso, em uma manhã de terça-feira. O preço do ouro em Hong-Kong caiu repentinamente, chegando a dez por cento do seu valor usual até o final do dia. Em seguida, o mesmo ocorreu nos mercados de todo o mundo. E a regra era vender, vender e vender ouro, sem que se encontrassem compradores.

No dia seguinte o preço do metal baixou ainda mais, para apenas um por cento do seu valor original dois dias antes. Os governos estavam confusos, e deram ordem de dizimar as plantações com fogo, e de jogar centenas de carregamentos cheios de maçãs douradas no fundo do mar.

Mas não houve qualquer resultado. As plantas renasciam nos terrenos, e passavam a produzir ainda mais ouro.

A economia mundial entrou em crise. As maçãs de ouro começaram a valer menos do que uma maçã comum. As terras onde haviam sido plantadas as macieiras especiais tornavam-se virtualmente improdutivas para o cultivo de qualquer alimento, pois as macieiras voltavam a nascer, fossem queimadas ou cortadas, e não deixavam nenhuma outra planta crescer no terreno.

As macieiras haviam se tornado uma praga mundial. Não era possível se livrar delas, e elas invadiam terras férteis, expulsando dali qualquer forma de vida existente no subsolo.

A inflação tornou-se galopante em todo o planeta, em uma escala nunca antes vista na história da humanidade. Sem saída, os governos mundiais substituíram as moedas nacionais por ouro puro, cujo valor era medido pelo peso. Mesmo assim, se inicialmente isso estancou o processo inflacionário, dentro em pouco a inflação retornava, agora medida em gramas de ouro.

No dia-a-dia, as pessoas passaram a carregar pequenas barras de ouro com o selo das casas da moeda de cada país. Tomou-se o cuidado de tornar o selo à prova de falsificações, e proibiu-se mundialmente a comercialização das maçãs, tornando-as virtualmente sem valor.

O ouro, um material durável e que não oxida, passou a ser utilizado para construir de prédios a navios, de móveis a eletrodomésticos. Era barato, e um recurso inesgotável.

O desabastecimento de alimentos passou a se tornar comum, assim como a fome. No campo, as pessoas já não tinham como subsistir com a própria terra, invadida pelas macieiras. Outros tinham suas terras invadidas por grandes fazendeiros, interessados em possuir a maior quantidade de terra arável possível, para plantar alimentos que agora tinham um preço cada vez maior. Os desabrigados do campo migravam para as cidades, sendo que muitas pessoas morriam no caminho, por cansaço e falta de alimento.

Mesmo nas cidades, a situação tornara-se caótica. A violência crescia. Filas eram encontradas em qualquer mercado, e as pessoas, quando possível, estocavam alimentos.

Glória reuníasse na casa de Ângela com outras mulheres, para cantar hinos e ler a Bíblia. Deixara a yoga e outros orientalismos, e diante de tanta desgraça tornara-se evangélica como a irmã.

Ângela, antes tão liberal e um tanto rebelde na igreja, tornara-se uma discípula fervorosa após o suicídio de Castilho. Um dia entrara em casa, e viu horrorizada o marido com os miolos espalhados no quarto, a arma jogada no chão, e seus filhos mortos a tiros. Chegou a pegar a arma ali solta, mas fora covarde demais para se matar.

Daniel tornara-se mendigo de rua após a falência do banco. Por mais que não fosse responsável pelo que acontecera, em sua mente algo lhe dizia que era tudo sua culpa. E se o joalheiro tivesse roubado uma pequena lasca daquela maçã, será que não poderia ter obtido uma muda? Será que Daniel tinha falado demais a alguém? Deveria ter revelado a fruta à sua mulher?

                Helena pediu o divórcio a Daniel após ele perder o emprego. Tentou ser solidária com o marido, mas Daniel começou a ter um comportamento autodestrutivo, primeiro traindo Helena compulsivamente, e depois se envolvendo com o crack. Após a separação, nem ela nem a família de Daniel nunca mais souberam do paradeiro dele.

                Eulália rezava todos os dias aos seus santos. Será que não deveriam ter derrubado a macieira? Alguém havia entrado ali e roubado algumas das maçãs? Pedia a Deus piedade, por ela e por toda a humanidade, pela cobiça desenfreada, pela dor de seus filhos, pela perda dos netos.

                Getúlio apenas passava o dia carrancudo, atrás da mesinha na loja. De vez em quando algum cliente aparecia, e ele podia trabalhar, para descansar a mente. As poucas barras de ouro que recebia também o deixavam um pouco mais satisfeito. Não queria pensar nos problemas, na família, mas a falta de trabalho criava horas e horas sem atividade, nas quais as ideias giravam em sua mente. O mundo, o mundo! Que sinal era aquele, daquela maldita árvore, que não soube reconhecer. Queria não estar vivo, para não ver o mundo e seus filhos naquela desgraça.

                Naquele dia, quando Eulália finalmente sumiu no fim da rua, Getúlio desligou a boca do fogão a tempo de evitar que o leite fervesse demais e derramasse para fora. Misturou um pouco do leite no café, pegou um pão com manteiga, e foi até a sala, assistir um pouco à TV e às notícias da manhã.

                Na hora do almoço, Eulália ainda não tinha voltado. Como nunca havia aprendido a cozinhar, Getúlio comeu um pouco de pão com presunto, e foi até a lojinha ler o resto do jornal.

                Esperou até começar a anoitecer. No cinzeiro, acumulavam-se os cigarros. Nenhum cliente apareceu, tampouco sua esposa.

                Às sete da noite, Getúlio repentinamente irrompeu em lágrimas. Pediu clemência a Deus, que o levasse de uma vez por todas. Havia arruinado a vida de seus filhos, a vida de sua mulher. Não se sentia um homem, sentia-se menos que um rato. Fracassara, fracassara naquilo que era mais importante em sua vida.

                Por fim, ouviu o telefone tocando dentro de casa. Correu para a sala, atendeu. Era um policial. Dizia que Eulália fora assaltada e morta por meliantes, por causa de um quilo de arroz.

                Getúlio encostou devagar o fone de volta ao aparelho. E caminhou como um sonâmbulo até o quintal.

                A fome, o cansaço, a tristeza, a dor. Elas remoíam suas entranhas como nunca antes. Pegou uma das belas maçãs douradas. E deu forte, com raiva, uma grande mordida. 

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