Sigismundo aprendera a profissão de eletricista no circo. Lá, ele fora nada mais, nada menos, que o homem mais forte do mundo - ou pelo menos da cidade da vez na qual o circo acampava. Uma tenda de artistas perambulando entre os campos vazios do sertão do Pernambuco.
Ali ele era o Sansão
Moreno, capaz de levantar a mulher mais gorda da plateia, apenas pisando sobre
uma gangorra, de elevar os halteres mais pesados, de quebrar com as próprias
mãos os blocos de pedras mais duros. Nas cidades onde o circo instalava-se, era
o ídolo instantâneo da molecada, e podia ver as crianças imitando-o pelas ruas.
Sansão era, além do
homem mais forte do mundo, também iluminador do circo. E era essa última função
que agora ajudava Sigismundo no final da vida.
Além disso, no Natal,
Sigismundo aprendera que deixar a barba e o cabelo, já brancos, crescerem além
do que permitia sua vaidade, facilitava e muito sua função em outro papel, não
tão prazeroso quanto o de Sansão Moreno, mas que rendia uns bons trocados: o de
Papai Noel. Modéstia à parte, tornara-se
até bem disputado entre os shopping
centers.
Não que fosse fácil.
Suava por baixo da roupa pesada, e doía quando lhe puxavam a barba. Apesar da
aparência natural (mesmo não tendo a pele tão branca, nem olhos azuis) sua voz
era bem menos grave do que se poderia supor de um Papai Noel, e a criançada não
perdoava – “que voz esquisita Papai Noel!” ou “por que você fala tão fininho?”.
E que crianças! Quinze
anos antes, quando estreara como o Bom Velhinho, as crianças se sentavam no
colo e contavam quais eram seus desejos, sob o olhar ferino e zeloso dos pais.
Um olhar que dizia: “ai de você se me envergonhar! Espera só chegar em casa!”
Sempre havia os
afoitos, que, após uma malcriação, levavam um beliscão ali mesmo, no seco; os
impossíveis, cujos pais punham a mão na própria cabeça com um misto de cansaço
e resignação – “pelo amor de Deus, não aqui na frente de todo mundo!”; e havia
os espertinhos, que puxavam a barba, roubavam um botão da roupa vermelha, ou
arrancavam um pelo do braço, bem naquela hora que a mãe não estava vendo.
No entanto, apesar da
vigilância sobre as crianças, a relação com os pais sempre fora, apesar de
amistosa, tensa. Afinal, se para as crianças era a fantasia se confrontando com
a realidade de um homem velho em uma roupa usada cheirando a mofo, para os pais
era o rebento deles sentado no colo de um total desconhecido, debaixo de um
fardão grotesco.
Tudo sob o espírito
mágico do Natal. Ho, ho, ho!
Mas ultimamente, o que
era difícil se tornara quase impossível. As crianças mexiam em tudo: nas
roupas, nos bonecos dos duendes, na neve feita de algodão, queriam ver o que
havia dentro das caixas imitando presentes. Puxões na barba agora eram aos
montes (todos queriam saber se era de verdade), tudo temperado por um tremendo
cinismo: “você não é o Papai Noel. Papai Noel não existe”.
- Existo, sim, você não
tá me vendo?
- Não, quem dá os
presentes é o meu pai e minha mãe. Você não existe!
E no meio de todo esse
frenesi natalino e franqueza infantil, os pais sorriam satisfeitos: como são
curiosos e espertos!
Um dia, uma senhora
idosa resolveu esperar seu lugar na fila. Ele estranhou. Não levava um neto com
ela. Era apenas a senhora, e mais nada.
Quando chegou sua vez,
a senhora aproximou-se de Sigismundo, e disse-lhe bem baixinho no ouvido: “piralacaxira-purililixibá!”.
“Piralacaxira-purililixibá!
Piralacaxira-purililixibá!” – gritavam os palhaços, batendo palmas, no
intervalo do espetáculo. A plateia acompanhava, repetindo alto, animada,
sentada nas armações de madeira já gastas, entre assovios e palmas, o grito de
guerra do circo. Eis que o senhor Stromboli, dono do circo de mesmo nome - na
verdade um paraibano cuja graça era Josenildo - anunciava mais uma atração
internacional. Uma misteriosa mulher, uma cigana legítima, lendária nas artes
da sedução, da adivinhação e dos mistérios ocultos da Índia e do antigo Egito!
Edith Salazar!
Palmas e mais palmas.
Por fim, Sansão abriu a luz do refletor, iluminando na boca de cena uma garota
de 15 anos. Cabelos longos, negros e ondulados, a pele dourada dos indianos, os
olhos delineados à moda árabe, de vestido vermelho, com saia volumosa e anágua,
pés descalços, batendo o pandeiro na palma de suas mãos.
Requebrava os quadris
no ritmo do instrumento, enquanto dava a volta no picadeiro, por fim
colocando-se de frente para a plateia, e a cada grito enérgico – Rá! – jogava com
uma das mãos a saia para um lado, deixando entrever em seu passo de dança as
pernas perfeitas.
Por fim terminou seu
número firmando seu pé direito sobre uma cadeira no centro da cena, deixando
aparecer um pedaço de sua coxa, junto a seu grito final. Palmas, bis, enquanto
a cigana arfava profundamente o peito, o pé nu sobre a cadeira, e o pandeiro
seguro no alto por uma das mãos. Sansão observava, inerte e embevecido.
Mas Sansão nunca teve
coragem de declarar seu amor. E aquela pequena pernambucana da Zona da Mata
casou-se com o dono do circo.
- Silmara? – Sigismundo
acordou do transe, olhando para os olhos daquela senhora. Eram os mesmos olhos
verdes, ainda brilhantes. A pele morena, gasta pelos anos, enrugara-se. Os
fartos cabelos eram agora grisalhos.
Ela nada disse. Apenas
segurou uma das mãos de Sigismundo, que pôs delicadamente sobre o rosto dela durante
alguns segundos. E sorriu.
Levantou-se,
afastando-se sem olhar para trás. O coração de Sigismundo bateu mais forte. Um
coração tão grande quanto o do homem mais forte do mundo.
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