Pirei no Conto

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quinta-feira, 23 de abril de 2015

Um Presente de Natal



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Sigismundo aprendera a profissão de eletricista no circo. Lá, ele fora nada mais, nada menos, que o homem mais forte do mundo - ou pelo menos da cidade da vez na qual o circo acampava. Uma tenda de artistas perambulando entre os campos vazios do sertão do Pernambuco. 

Ali ele era o Sansão Moreno, capaz de levantar a mulher mais gorda da plateia, apenas pisando sobre uma gangorra, de elevar os halteres mais pesados, de quebrar com as próprias mãos os blocos de pedras mais duros. Nas cidades onde o circo instalava-se, era o ídolo instantâneo da molecada, e podia ver as crianças imitando-o pelas ruas.

Sansão era, além do homem mais forte do mundo, também iluminador do circo. E era essa última função que agora ajudava Sigismundo no final da vida.

Além disso, no Natal, Sigismundo aprendera que deixar a barba e o cabelo, já brancos, crescerem além do que permitia sua vaidade, facilitava e muito sua função em outro papel, não tão prazeroso quanto o de Sansão Moreno, mas que rendia uns bons trocados: o de Papai Noel.  Modéstia à parte, tornara-se até bem disputado entre os shopping centers.

Não que fosse fácil. Suava por baixo da roupa pesada, e doía quando lhe puxavam a barba. Apesar da aparência natural (mesmo não tendo a pele tão branca, nem olhos azuis) sua voz era bem menos grave do que se poderia supor de um Papai Noel, e a criançada não perdoava – “que voz esquisita Papai Noel!” ou “por que você fala tão fininho?”.

E que crianças! Quinze anos antes, quando estreara como o Bom Velhinho, as crianças se sentavam no colo e contavam quais eram seus desejos, sob o olhar ferino e zeloso dos pais. Um olhar que dizia: “ai de você se me envergonhar! Espera só chegar em casa!”

Sempre havia os afoitos, que, após uma malcriação, levavam um beliscão ali mesmo, no seco; os impossíveis, cujos pais punham a mão na própria cabeça com um misto de cansaço e resignação – “pelo amor de Deus, não aqui na frente de todo mundo!”; e havia os espertinhos, que puxavam a barba, roubavam um botão da roupa vermelha, ou arrancavam um pelo do braço, bem naquela hora que a mãe não estava vendo.

No entanto, apesar da vigilância sobre as crianças, a relação com os pais sempre fora, apesar de amistosa, tensa. Afinal, se para as crianças era a fantasia se confrontando com a realidade de um homem velho em uma roupa usada cheirando a mofo, para os pais era o rebento deles sentado no colo de um total desconhecido, debaixo de um fardão grotesco.

Tudo sob o espírito mágico do Natal. Ho, ho, ho!

Mas ultimamente, o que era difícil se tornara quase impossível. As crianças mexiam em tudo: nas roupas, nos bonecos dos duendes, na neve feita de algodão, queriam ver o que havia dentro das caixas imitando presentes. Puxões na barba agora eram aos montes (todos queriam saber se era de verdade), tudo temperado por um tremendo cinismo: “você não é o Papai Noel. Papai Noel não existe”.

- Existo, sim, você não tá me vendo?

- Não, quem dá os presentes é o meu pai e minha mãe. Você não existe!

E no meio de todo esse frenesi natalino e franqueza infantil, os pais sorriam satisfeitos: como são curiosos e espertos!

Um dia, uma senhora idosa resolveu esperar seu lugar na fila. Ele estranhou. Não levava um neto com ela. Era apenas a senhora, e mais nada.

Quando chegou sua vez, a senhora aproximou-se de Sigismundo, e disse-lhe bem baixinho no ouvido: “piralacaxira-purililixibá!”.

“Piralacaxira-purililixibá! Piralacaxira-purililixibá!” – gritavam os palhaços, batendo palmas, no intervalo do espetáculo. A plateia acompanhava, repetindo alto, animada, sentada nas armações de madeira já gastas, entre assovios e palmas, o grito de guerra do circo. Eis que o senhor Stromboli, dono do circo de mesmo nome - na verdade um paraibano cuja graça era Josenildo - anunciava mais uma atração internacional. Uma misteriosa mulher, uma cigana legítima, lendária nas artes da sedução, da adivinhação e dos mistérios ocultos da Índia e do antigo Egito!

Edith Salazar!

Palmas e mais palmas. Por fim, Sansão abriu a luz do refletor, iluminando na boca de cena uma garota de 15 anos. Cabelos longos, negros e ondulados, a pele dourada dos indianos, os olhos delineados à moda árabe, de vestido vermelho, com saia volumosa e anágua, pés descalços, batendo o pandeiro na palma de suas mãos.

Requebrava os quadris no ritmo do instrumento, enquanto dava a volta no picadeiro, por fim colocando-se de frente para a plateia, e a cada grito enérgico – Rá! – jogava com uma das mãos a saia para um lado, deixando entrever em seu passo de dança as pernas perfeitas.

Por fim terminou seu número firmando seu pé direito sobre uma cadeira no centro da cena, deixando aparecer um pedaço de sua coxa, junto a seu grito final. Palmas, bis, enquanto a cigana arfava profundamente o peito, o pé nu sobre a cadeira, e o pandeiro seguro no alto por uma das mãos. Sansão observava, inerte e embevecido.

Mas Sansão nunca teve coragem de declarar seu amor. E aquela pequena pernambucana da Zona da Mata casou-se com o dono do circo.

- Silmara? – Sigismundo acordou do transe, olhando para os olhos daquela senhora. Eram os mesmos olhos verdes, ainda brilhantes. A pele morena, gasta pelos anos, enrugara-se. Os fartos cabelos eram agora grisalhos.

Ela nada disse. Apenas segurou uma das mãos de Sigismundo, que pôs delicadamente sobre o rosto dela durante alguns segundos. E sorriu.

Levantou-se, afastando-se sem olhar para trás. O coração de Sigismundo bateu mais forte. Um coração tão grande quanto o do homem mais forte do mundo.

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