Pirei no Conto

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quinta-feira, 2 de abril de 2015

Valéria Paulette, a Coquete

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           Em uma noite sem nuvens, com a lua amarelada no horizonte, Valéria ficou olhando a estante do T-Bone na parada de ônibus, do outro lado da rua. O movimento ficava fraco em dia da semana.
           Pra quem não conhece, o T-Bone é um açougue. Um açougue cultural. O dono do açougue é fascinado por livros, e quis leva-los a todos os lugares. Por isso – é a mais pura verdade – vários pontos de ônibus em Brasília têm uma estante de metal, com vários livros e revistas pra levar e ler, sem tempo nem registro para devolver.
            E Valéria atravessou a rua, uma revista a essa hora não ia mal pra passar o tempo...
Mas na estante do T-Bone só tinha dicionário. Mas, ah, tinha um livro pequeno. Pegou nas mãos e viu na capa: Poemas de Gregório de Matos. Valéria folheou, e um verso chamou a atenção:
            A Bahia tem dous ff a meu ver
            Um furtar, outro fuder.”
            Ué, mas palavrão pode? Em poesia?
            Váleria deu aquela ajeitadinha no saco, por baixo da saia, e foi virando as páginas daquele poema safado. Pelo menos distraía daquele sapato apertado. Quem manda usar salto?
            Levou o livro pra casa. Marcou a frase no livrinho com caneta. E no dia seguinte, de chinela e bermuda, foi em uma loja de tintas, e comprou uma lata de spray. Rosa-choque.
            E naquela noite, enquanto as outras competiam pela clientela que não vinha, Valéria Paulette pichava, em um lugar sem luz e sem vigia, a sua primeira poesia.
            E de manhã, quando passava o primeiro gaiato, viu escrito no muro o que se segue abaixo: 
“Brasília tem dois ff a meu ver,
um furtar, outro fuder
meu cu é que não vai fazer.

E embaixo assinado: “Valéria Paulette, a Coquete B.B.
E a cada noite, logo antes de voltar pra casa e dormir, Valéria ainda tinha inspiração pra cometer.
Às vezes estava triste e inconsolável: 
“Choro na Asa Norte
Na Asa Sul
No Sudoeste
Choro e encho o Lago
Por aquele me emputesse!
Me deve e não paga
Esse cliente da peste!”
Enquanto os muros da cidade ganhavam mais e mais poesias, as travestis ficavam encucadas. Quem era essa Coquete? O ti-ti-ti rolou até descobrirem que era uma Valéria Boneca que morava na 411 Norte. Uma travesti que nem elas.
Que estranho, pichar muro com poemas... Cada doido com sua loucura. Estavam mais preocupadas com os clientes, sempre poucos. E o dinheiro à míngua.
Valéria continuou ganhando sua graninha na noite. E de vez quando, poetava nos muros, quando dava na telha.
Mas um dia teve uma surpresa. Pois nada na vida é definitivo.
Recebeu do correio uma carta, era seu filho que chegava.
Vejam só! Valéria tinha um filho. De nome Aristênio.
E uma ex-mulher, das bravas! Ela era evangélica, e a vida de Valéria não aceitava.
Mas gostava do dinheirinho que Valéria para ela todo mês mandava... Pelo menos não reclamava...
O sonho de Valéria era ver Aristênio na universidade.
E não era isso que a carta dizia?
“Pai, vou pra Brasília. A mamãe nunca falou muito de vocês. Do senhor, só tenho uma foto antiga. Mas passei na UnB. Vou sair escondido de casa. E quero morar com você!”
E agora?! Valéria se arrepiou.
No dia marcado, foi à rodoviária. Tentou fazer um trejeito de machão, e botou um paletó. E calçou um sapato 44, bico largo.
E do ônibus, vindo de Unaí, saltou Aristênio! Era sua cara, um rapaz lindo! Abraçaram-se, e o amor de pai, até então escondido, veio forte em um abraço apertado.
“Meu filho.” – pensou feliz.
Pegaram um táxi para a volta. Aquele sapato 44 estava apertando seu joanete.
Mas na volta de casa, Valéria observou: o menino com um casaco tão pesado...
“Filho, me dê seu casaco...”
“Não pai, tô com frio!”
“Mas nesse calor?”
Fazia 10 minutos que conhecia o filho. E já ia começar a primeira briga.
E só não começou uma briga para valer, porque Valéria tomou um susto assim que o táxi virou a esquina... Adivinha o que estava escrito no muro, debaixo do seu poema?
Alguém havia escrito a giz, como uma réplica:

“Eu te amo”

Valéria engoliu a pasmaceira, para o filho não notar. E pediu para o táxi bem longe do muro parar. Ainda bem que morava no comércio da entrequadra...
Quando chegaram em casa, tudo preparado: no sofá dormia Valéria, no quarto Aristênio.
E na sala, muuuuuito bem escondidos, a maquiagem e os vestidos.
Valéria, como boa mineira de Unaí, passou um café e assou um pão de queijo para o rebento. E enquanto conversavam, Aristênio revelou que só estudava de dia.
 Valéria sentiu um certo alívio. Ia ser mais fácil continuar trabalhando à noite, sem dar na vista do filho.

Passaram-se alguns meses.
Uma vez de manhã, deu falta da cartela com o hormônio... onde teria colocado? Será que Aristênio tinha achado, e jogado fora?
Valéria ficou com isso na cabeça. Mas não por muito tempo.
Por que, assim que pegou o jornal, deu de cara com uma notícia de arrepiar.
E não é que um descarado, chamado Adeomar, tinha tomado seu nome, dizendo que a Valéria Paulette era ele? E ainda lançaria um livro com os poemas dela, em uma noite de autógrafos?
Valéria pegou o celular. E a história se espalhou rapidinho entre as travestis. Uma ligava para a outra, que ligava para mais uma. Todas enfurecidas. Esse Adeomar ia ter troco.
E no dia do lançamento, foram todas na livraria. Para a desforra.
Reuniram-se lá na frente. E viram, pela vitrine, o tal Adeomar, com a cara mais lambida, autografando os livros.  Começaram a vaiar, gritaram que iam invadir.
Tomar de volta o que era das travestis!
Meteram o pé na porta. Entraram chutando as bundas secas da high society. O Adeomar tentou fugir, mas era tarde demais – as meninas o cercaram, já não tinha mais saída. E prenderam ele, com uma meia arrastão, ao pé da mesa com os livros.
Ficaram festejando, e gritando vitória. Uma socialite gritou de fora, ameaçou: tinham chamado a polícia.
Mas as garotas estavam preparadas. Eles que viessem, giletes a postos. Mas resolveram retocar a maquiagem. Vai que aparece a televisão?
Que veio mesmo, antes da polícia. Queriam matéria exclusiva com a líder da rebelião.
E Valéria olhou, pensou... E só foi conversar com o repórter porque era um gato, e parecia o Evaristo Costa.
 O repórter perguntou para Valéria: qual a causa da rebelião? E Valéria soltou o verbo. Fui roubada! Os poemas são meus! Estão nos muros da cidade, é só olhar! Era eu quem pichava, e não esse tal Adeomar!
Mas nessa hora a polícia chegou. Com atraso, claro, como era de se esperar.
Foi um policial negociar. Era o dia de sorte da Valéria. O repórter era bonito, mas um tanto baixinho... Já o policial tinha outras qualidades... Um peitão, um bundão, uns lábios carnudos. E mais abaixo...
Digamos que roupa de policial é um tanto apertada na frente.
E o policial era gente boa. Conversou legal com Valéria. Entendeu a história do roubo dos poemas. Mas deixa disso, boneca, esse cara não presta... para que se queimar, sendo que ele é que é o ladrão?
Valéria se deixou levar, menos pela lábia, e mais pelo... hã... o que você disse mesmo? Que voz rouca!... Claro, claro, vamos indo... Garooootas!...
E as travestis foram saindo, deixando o Adeomar ainda amarradinho, a chorar que nem criancinha que perde o doce.
E foram seguindo pela W3 Norte, procurando um bar... hoje era o dia delas, botaram o ladrão em seu devido lugar...
Mas enquanto riam e caminhavam pela Avenida... quem Valéria vê no meio da turma? Essa menina não conhecia...
E quando chegou perto, arregalou os olhos. Era Aristênio!
Maquiado, de salto quinze, requebrando sem problema...
E sem aquele blusão de frio que sempre usava... dava para ver despontando debaixo da blusa... seus dois belos peitos.
Valéria começou a dar uns bons tabefes, seu moleque sem vergonha! Então veio pra capital para estudar, ou pra ser piriguete?
As amigas mais chegadas seguraram Valéria. Antes que Aristênio levasse uma surra.
Valéria se acalmou. Mas levou Aristênio à força para casa, para uma conversa de homem para homem. Ou de mulher para mulher. Enfim, você entendeu.
E Valéria esperou uma explicação. Mas quem queria explicação agora era Aristênio. Que história é essa de pai travesti?
E Valéria contou sua história. Ou melhor, a história de Clodoaldo – seu nome antes de chegar em Brasília.
Do casamento fracassado. Do dia em que a mulher viu Clodoaldo vestido com as roupas dela, se admirando no espelho.

Valéria explicou que veio para a cidade se tornar quem era de verdade.
E Aristênio também se explicou. Para começar, confessou o roubo dos hormônios de Valéria...
Não era travesti, mas transexual. Queria operar, ser mulher. Ser homem é muito baixo astral.
Valéria só se acalmou, quando Aristênio explicou: quero me formar em História. Vou ser bacharel, fazer mestrado e doutorado. Eu adoro estudar.
Mas arrematou: vou continuar a ser trans.
Ligaram a TV. E no DFTV, apareceu Valéria, sendo entrevistada pelo repórter gato (mas um tanto baixinho).
E o âncora do jornal deixou a dúvida no ar – quem é que tinha razão? Valéria ou Adeomar? Quem era o autor daqueles poemas nos muros da capital?
No Correio Brasiliense, no dia seguinte, a mesma dúvida: Valéria ou Adeomar?
E a cidade se dividiu.
Nos bares, era o assunto do momento.
Uns a favor de Valéria. Até havia quem, querendo ser solidário, dizia que era preconceito, e chamava Valéria de “vítima da sociedade”.
Já outros, fechavam com Adeomar. Um homem pobre, simples, descoberto nas ruas de Brasília. Mas a poesia morava em seu coração.
Ah, coitados. Tão iludidos com esse Adeomar, esse bandido...
E resolveram, no dia seguinte, na TV Brasília, lançar um desafio: chamariam os dois para determinar quem é que estava com a verdade.
No dia marcado, na televisão, Valéria e Adeomar, cada um em frente a uma parede, puseram-se a pichar o que a poesia inspirasse a eles.
A cidade inteira assistia, ao vivo. Deixaram até de ver o Big Brother.
E quando os dois terminaram, um grupo de notórios poetas brasilienses pôs-se a examinar.
Eram eles quem iriam julgar.
O estilo era igual. A letra também. Até a cor da tinta era a mesma. Pois então, quem estava certo?
Mas antes que algo concluíssem, Valéria, muito esperta, chamou a atenção de Adeomar, na frente dos juízes:
- Vem cá, Adeomar. Como você assinou o poema?
- Ora, como Valéria Paulette, a Coquete B. B. Não tá vendo?
- E o “B. B.”, Adeomar? O que quer dizer?
Por essa Adeomar não esperava. Não sabia o que falar.
- “B. B.” é... é... é...
E calou-se envergonhado. Os juízes se viraram para Valéria, esperando uma resposta!
E com ar de vitoriosa, Valéria esclareceu:
“Mas não é óbvio? Valéria Paulette, a Coquete ‘B. B.’ quer dizer...”
“Valéria Paulette, a Coquete ‘Boa de Boquete’!”
E as pessoas no estúdio deram vivas a Valéria! A verdadeira autora dos versos das ruas de Brasília!
Na cidade toda, as pessoas gritavam pelas janelas!
“Valéria, Valéria!”
E os carros buzinavam alto pelas quadras, comemorando!
A capital entrou em festa!
As travestis entraram no estúdio, e levaram Valéria nos braços!
Naquele dia, Valéria bebeu tanto que nem sabe como chegou em casa!
E a festa foi até a madrugada, com muitos batuques nas mesas dos bares!
Por isso, no dia seguinte... Valéria estava com aquela ressaca!
E alguém apertou o interfone do apartamento de Valéria. Às dez da manhã.
Valéria se arrastou para atender. Maldizendo aquela figura...
Mas era o tal policial gostosão. Queria mais algumas informações para o inquérito sobre a invasão da livraria.
Valéria olhou para Aristênio, com certo receio. Mas mandou o policial subir.
E quando Valéria abriu a porta... um grande buquê de rosas.
E Valéria descobriu, que o admirador secreto, que escrevia “eu te amo”, embaixo de suas poesias, não era aquele agente da lei?
E depois de toda essa grande aventura...
Hoje Valéria está casada, de papel passado. Mudou para um apartamento mais legal, nas trezentos. Moram juntos ela, o maridão, e Aristênio. Que já se formou, e está, como prometido, no mestrado. E muito elogiado.
Aliás, elogiado, não. Elogiada. Valéria e o marido pagaram a operação. E Aristênio se tornou... Diana.
Já Valéria deixou os muros para trás. E virou uma espécie de popstar no Distrito Federal. Dá autógrafos em todo lugar. Já está no terceiro livro. Que tem dado um bom dinheirinho...
Mas a história não acaba aí.
Valéria fez escola.
Os muros da cidade se renovam com novos poemas nas esquinas.
Já são conhecidas, nacionalmente, as travestis-poetas da cidade de Brasília!!!

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