Em uma noite sem nuvens, com a lua amarelada
no horizonte, Valéria ficou olhando a estante do T-Bone na parada de ônibus, do
outro lado da rua. O movimento ficava fraco em dia da semana.
Pra
quem não conhece, o T-Bone é um açougue. Um açougue cultural. O dono do açougue
é fascinado por livros, e quis leva-los a todos os lugares. Por isso – é a mais
pura verdade – vários pontos de ônibus em Brasília têm uma estante de metal,
com vários livros e revistas pra levar e ler, sem tempo nem registro para
devolver.
E
Valéria atravessou a rua, uma revista a essa hora não ia mal pra passar o
tempo...
Mas na estante do T-Bone só tinha dicionário.
Mas, ah, tinha um livro pequeno. Pegou nas mãos e viu na capa: Poemas de Gregório
de Matos. Valéria folheou, e um verso chamou a atenção:
“A Bahia tem dous ff a meu ver
Um furtar, outro fuder.”
Ué,
mas palavrão pode? Em poesia?
Váleria
deu aquela ajeitadinha no saco, por baixo da saia, e foi virando as páginas
daquele poema safado. Pelo menos distraía daquele sapato apertado. Quem manda
usar salto?
Levou
o livro pra casa. Marcou a frase no livrinho com caneta. E no dia seguinte, de
chinela e bermuda, foi em uma loja de tintas, e comprou uma lata de spray.
Rosa-choque.
E
naquela noite, enquanto as outras competiam pela clientela que não vinha,
Valéria Paulette pichava, em um lugar sem luz e sem vigia, a sua primeira
poesia.
E de manhã, quando passava o primeiro
gaiato, viu escrito no muro o que se segue abaixo:
“Brasília tem dois ff a meu ver,
um furtar, outro fuder
meu cu é que não vai fazer.
E embaixo assinado: “Valéria Paulette, a Coquete B.B.”
E a cada noite, logo antes de voltar pra casa
e dormir, Valéria ainda tinha inspiração pra cometer.
Às vezes estava triste e inconsolável:
“Choro na Asa Norte
Na Asa Sul
No Sudoeste
Choro e encho o Lago
Por aquele me emputesse!
Me deve e não paga
Esse cliente da peste!”
Enquanto os muros da cidade ganhavam mais e
mais poesias, as travestis ficavam encucadas. Quem era essa Coquete? O ti-ti-ti
rolou até descobrirem que era uma Valéria Boneca que morava na 411 Norte. Uma
travesti que nem elas.
Que estranho, pichar muro com poemas... Cada
doido com sua loucura. Estavam mais preocupadas com os clientes, sempre poucos.
E o dinheiro à míngua.
Valéria continuou ganhando sua graninha na
noite. E de vez quando, poetava nos muros, quando dava na telha.
Mas um dia teve uma surpresa. Pois nada na
vida é definitivo.
Recebeu do correio uma carta, era seu filho
que chegava.
Vejam só! Valéria tinha um filho. De nome
Aristênio.
E uma ex-mulher, das bravas! Ela era
evangélica, e a vida de Valéria não aceitava.
Mas gostava do dinheirinho que Valéria para
ela todo mês mandava... Pelo menos não reclamava...
O sonho de Valéria era ver Aristênio na
universidade.
E não era isso que a carta dizia?
“Pai, vou pra Brasília. A mamãe nunca falou
muito de vocês. Do senhor, só tenho uma foto antiga. Mas passei na UnB. Vou
sair escondido de casa. E quero morar com você!”
E agora?! Valéria se arrepiou.
No dia marcado, foi à rodoviária. Tentou fazer
um trejeito de machão, e botou um paletó. E calçou um sapato 44, bico largo.
E do ônibus, vindo de Unaí, saltou Aristênio!
Era sua cara, um rapaz lindo! Abraçaram-se, e o amor de pai, até então
escondido, veio forte em um abraço apertado.
“Meu filho.” – pensou feliz.
Pegaram um táxi para a volta. Aquele sapato 44
estava apertando seu joanete.
Mas na volta de casa, Valéria observou: o
menino com um casaco tão pesado...
“Filho, me dê seu casaco...”
“Não pai, tô com frio!”
“Mas nesse calor?”
Fazia 10 minutos que conhecia o filho. E já ia
começar a primeira briga.
E só não começou uma briga para valer, porque
Valéria tomou um susto assim que o táxi virou a esquina... Adivinha o que
estava escrito no muro, debaixo do seu poema?
Alguém havia escrito a giz, como uma réplica:
“Eu te amo”
Valéria engoliu a pasmaceira, para o filho não
notar. E pediu para o táxi bem longe do muro parar. Ainda bem que morava no comércio
da entrequadra...
Quando chegaram em casa, tudo preparado: no
sofá dormia Valéria, no quarto Aristênio.
E na sala, muuuuuito bem escondidos, a
maquiagem e os vestidos.
Valéria, como boa mineira de Unaí, passou um
café e assou um pão de queijo para o rebento. E enquanto conversavam, Aristênio
revelou que só estudava de dia.
Valéria
sentiu um certo alívio. Ia ser mais fácil continuar trabalhando à noite, sem
dar na vista do filho.
Passaram-se alguns meses.
Uma vez de manhã, deu falta da cartela com o
hormônio... onde teria colocado? Será que Aristênio tinha achado, e jogado
fora?
Valéria ficou com isso na cabeça. Mas não por
muito tempo.
Por que, assim que pegou o jornal, deu de cara
com uma notícia de arrepiar.
E não é que um descarado, chamado Adeomar, tinha
tomado seu nome, dizendo que a Valéria Paulette era ele? E ainda lançaria um
livro com os poemas dela, em uma
noite de autógrafos?
Valéria pegou o celular. E a história se
espalhou rapidinho entre as travestis. Uma ligava para a outra, que ligava para
mais uma. Todas enfurecidas. Esse Adeomar ia ter troco.
E no dia do lançamento, foram todas na
livraria. Para a desforra.
Reuniram-se lá na frente. E viram, pela
vitrine, o tal Adeomar, com a cara mais lambida, autografando os livros. Começaram a vaiar, gritaram que iam invadir.
Tomar de volta o que era das travestis!
Meteram o pé na porta. Entraram chutando as
bundas secas da high society. O
Adeomar tentou fugir, mas era tarde demais – as meninas o cercaram, já não
tinha mais saída. E prenderam ele, com uma meia arrastão, ao pé da mesa com os
livros.
Ficaram festejando, e gritando vitória. Uma
socialite gritou de fora, ameaçou: tinham chamado a polícia.
Mas as garotas estavam preparadas. Eles que
viessem, giletes a postos. Mas resolveram retocar a maquiagem. Vai que aparece
a televisão?
Que veio mesmo, antes da polícia. Queriam matéria
exclusiva com a líder da rebelião.
E Valéria olhou, pensou... E só foi conversar com
o repórter porque era um gato, e parecia o Evaristo Costa.
O repórter
perguntou para Valéria: qual a causa da rebelião? E Valéria soltou o verbo. Fui
roubada! Os poemas são meus! Estão nos muros da cidade, é só olhar! Era eu quem
pichava, e não esse tal Adeomar!
Mas nessa hora a polícia chegou. Com atraso,
claro, como era de se esperar.
Foi um policial negociar. Era o dia de sorte
da Valéria. O repórter era bonito, mas um tanto baixinho... Já o policial tinha
outras qualidades... Um peitão, um bundão, uns lábios carnudos. E mais
abaixo...
Digamos que roupa de policial é um tanto
apertada na frente.
E o policial era gente boa. Conversou legal
com Valéria. Entendeu a história do roubo dos poemas. Mas deixa disso, boneca,
esse cara não presta... para que se queimar, sendo que ele é que é o ladrão?
Valéria se deixou levar, menos pela lábia, e
mais pelo... hã... o que você disse mesmo? Que voz rouca!... Claro, claro,
vamos indo... Garooootas!...
E as travestis foram saindo, deixando o
Adeomar ainda amarradinho, a chorar que nem criancinha que perde o doce.
E foram seguindo pela W3 Norte, procurando um
bar... hoje era o dia delas, botaram o ladrão em seu devido lugar...
Mas enquanto riam e caminhavam pela Avenida...
quem Valéria vê no meio da turma? Essa menina não conhecia...
E quando chegou perto, arregalou os olhos. Era
Aristênio!
Maquiado, de salto quinze, requebrando sem
problema...
E sem aquele blusão de frio que sempre usava...
dava para ver despontando debaixo da blusa... seus dois belos peitos.
Valéria começou a dar uns bons tabefes, seu
moleque sem vergonha! Então veio pra capital para estudar, ou pra ser piriguete?
As amigas mais chegadas seguraram Valéria.
Antes que Aristênio levasse uma surra.
Valéria se acalmou. Mas levou Aristênio à
força para casa, para uma conversa de homem para homem. Ou de mulher para
mulher. Enfim, você entendeu.
E Valéria esperou uma explicação. Mas quem
queria explicação agora era Aristênio. Que história é essa de pai travesti?
E Valéria contou sua história. Ou melhor, a
história de Clodoaldo – seu nome antes de chegar em Brasília.
Do casamento fracassado. Do dia em que a
mulher viu Clodoaldo vestido com as roupas dela, se admirando no espelho.
Valéria explicou que veio para a cidade se tornar
quem era de verdade.
E Aristênio também se explicou. Para começar,
confessou o roubo dos hormônios de Valéria...
Não era travesti, mas transexual. Queria
operar, ser mulher. Ser homem é muito baixo astral.
Valéria só se acalmou, quando Aristênio
explicou: quero me formar em História. Vou ser bacharel, fazer mestrado e
doutorado. Eu adoro estudar.
Mas arrematou: vou continuar a ser trans.
Ligaram a TV. E no DFTV, apareceu Valéria,
sendo entrevistada pelo repórter gato (mas um tanto baixinho).
E o âncora do jornal deixou a dúvida no ar –
quem é que tinha razão? Valéria ou Adeomar? Quem era o autor daqueles poemas
nos muros da capital?
No Correio Brasiliense, no dia seguinte, a
mesma dúvida: Valéria ou Adeomar?
E a cidade se dividiu.
Nos bares, era o assunto do momento.
Uns a favor de Valéria. Até havia quem,
querendo ser solidário, dizia que era preconceito, e chamava Valéria de “vítima
da sociedade”.
Já outros, fechavam com Adeomar. Um homem
pobre, simples, descoberto nas ruas de Brasília. Mas a poesia morava em seu
coração.
Ah, coitados. Tão iludidos com esse Adeomar,
esse bandido...
E resolveram, no dia seguinte, na TV Brasília,
lançar um desafio: chamariam os dois para determinar quem é que estava com a
verdade.
No dia marcado, na televisão, Valéria e
Adeomar, cada um em frente a uma parede, puseram-se a pichar o que a poesia
inspirasse a eles.
A cidade inteira assistia, ao vivo. Deixaram até
de ver o Big Brother.
E quando os dois terminaram, um grupo de notórios
poetas brasilienses pôs-se a examinar.
Eram eles quem iriam julgar.
O estilo era igual. A letra também. Até a cor
da tinta era a mesma. Pois então, quem estava certo?
Mas antes que algo concluíssem, Valéria, muito
esperta, chamou a atenção de Adeomar, na frente dos juízes:
- Vem cá, Adeomar. Como você assinou o poema?
- Ora, como Valéria Paulette, a Coquete B. B.
Não tá vendo?
- E o “B. B.”, Adeomar? O que quer dizer?
Por essa Adeomar não esperava. Não sabia o que
falar.
- “B. B.” é... é... é...
E calou-se envergonhado. Os juízes se viraram
para Valéria, esperando uma resposta!
E com ar de vitoriosa, Valéria esclareceu:
“Mas não é óbvio? Valéria Paulette, a Coquete ‘B.
B.’ quer dizer...”
“Valéria Paulette, a Coquete ‘Boa de Boquete’!”
E as pessoas no estúdio deram vivas a Valéria!
A verdadeira autora dos versos das ruas de Brasília!
Na cidade toda, as pessoas gritavam pelas
janelas!
“Valéria, Valéria!”
E os carros buzinavam alto pelas quadras,
comemorando!
A capital entrou em festa!
As travestis entraram no estúdio, e levaram
Valéria nos braços!
Naquele dia, Valéria bebeu tanto que nem sabe
como chegou em casa!
E a festa foi até a madrugada, com muitos
batuques nas mesas dos bares!
Por isso, no dia seguinte... Valéria estava
com aquela ressaca!
E alguém apertou o interfone do apartamento de
Valéria. Às dez da manhã.
Valéria se arrastou para atender. Maldizendo
aquela figura...
Mas era o tal policial gostosão. Queria mais
algumas informações para o inquérito sobre a invasão da livraria.
Valéria olhou para Aristênio, com certo
receio. Mas mandou o policial subir.
E quando Valéria abriu a porta... um grande
buquê de rosas.
E Valéria descobriu, que o admirador secreto,
que escrevia “eu te amo”, embaixo de suas poesias, não era aquele agente da lei?
E depois de toda essa grande aventura...
Hoje Valéria está casada, de papel passado. Mudou
para um apartamento mais legal, nas trezentos. Moram juntos ela, o maridão, e
Aristênio. Que já se formou, e está, como prometido, no mestrado. E muito
elogiado.
Aliás, elogiado, não. Elogiada. Valéria e o
marido pagaram a operação. E Aristênio se tornou... Diana.
Já Valéria deixou os muros para trás. E virou
uma espécie de popstar no Distrito Federal. Dá autógrafos em todo lugar. Já está
no terceiro livro. Que tem dado um bom dinheirinho...
Mas a história não acaba aí.
Valéria fez escola.
Os muros da cidade se renovam com novos poemas
nas esquinas.
Já são conhecidas, nacionalmente, as
travestis-poetas da cidade de Brasília!!!
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