Gilvan Barbieri ligou para a mulher. “Sim, amor, tenho que ficar até mais tarde na firma.” Ouviu seu filho, ainda de meses, chorando ao fundo. A mulher pediu que ele, na volta do trabalho, trouxesse algo do mercado.
Gilvan colocou o telefone de
volta no gancho. Todos já tinham ido embora. Inclusive seu chefe. E Gilvan
aproveitou para ligar, dali mesmo, para Cleodete.
O encontro foi rápido, mas
intenso. A pele negra daquela mulher contrastando com sua própria pele, clara como papel... aquela
juba macia de cabelos crespos dela...
Quando terminaram, Gilvan fumou
um cigarro, e viu Cleodete se arrumando na frente do espelho, ainda nua. Gilvan
deu um trago, e disse:
- Vem cá, minha
mulata-exportação!
Cleodete olhou para ele de um
jeito estranho, como quem comeu e não gostou.
- Só se for você, pra exportar
de volta pra Calábria. Viu, ô, Gilvan Barbieri...
- Você adora... Não é à tôa que
o papai tem esse brinquedo grandão aqui... é importado da Itália!
- Ri. Ri mesmo. Pede mais uma vez
pra eu alisar o cabelo, que eu já te mostro o que eu faço com o brinquedinho...
Mas Gilvan já levantava da cama
e agarrava Cleodete pelas costas. Mas ela se desfez do abraço.
- Para! Vai voltar pra tua
mulher, vai!
- Ih, que é neguinha?...
- E para de me chamar de
“neguinha”. Tenho nome.
- Ah, Cleodete! Que que é? Quer
me encher o saco, agora?
Gilvan já estava nervoso, e
botava apressado as calças.
Foi quando Cleodete, de uma vez,
revelou logo o que a preocupava:
- Gilvan, eu tô grávida.
Enquanto isso, no Parque da
Cidade, João Mariano olhava, por uma fresta do vidro do carro, quem se
aventurava no estacionamento.
Acabava de vir do happy-hour da firma, estava um pouco
bêbado.
O chão era esburacado, e ele
precisava andar com o carro lentamente. Enquanto isso, vigiava os outros
carros. Às vezes, algum emparelhava com o dele. Se fosse alguém bonito, ele se
arriscava a baixar o vidro.
Parou um rapaz branquinho, não
mais de 30 anos. Fazia o estilo dele, bem europeuzinho. Era até meio ruivo.
O garoto tomou a iniciativa:
- O que você quer fazer?
- Eu sou passivo. E você?
- Eu sou ativo.
- Quer encostar ali mais acima?
Estacionaram o carro debaixo de
uma árvore. E o garoto entrou no carro de João.
João não tinha comprado
camisinha. E aquele garoto tampouco.
Já Gustavo Linsenbröder estava a
caminho de casa. Tentou ligar para a mulher. Mas ela já dormia, e não atendeu.
E ele resolveu dar uma olhadinha no seu celular 4G.
Aquele dia tinha sido pesado. O que queria era relaxar.
Encontrou na internet um site de acompanhantes.
Cada boneca! Uma delícia.
Seus olhos verdes se
hipnotizaram com uma das fotos. A bunda era perfeita.
E os outros atributos também. Quanto maior, melhor.
Ligou no número indicado. Perguntou quanto era o programa.
- 50 o boquete. 150 é o programa completo.
- Só pra me comer é quanto? – perguntou para a travesti.
E o loiro Gustavo, enquanto a mulher dormia, desviou o caminho do carro.
Mas com destino certo.
No dia seguinte, os três amigos acordaram cedo. Cada um em sua casa.
Gilvan, João e Gustavo.
Acordaram as mulheres. Tão orgulhosas dos maridos! Sempre trabalhando até
tão tarde, ainda tinham disposição para acompanhar suas esposas nas lutas
importantes para o país.
E cada uma em sua casa, elas escovaram os cabelos, naturalmente lisos,
botaram a maquiagem de acordo com a pele branca. De porcelana!
Olharam no espelho o bumbum bem durinho, de horas de academia. Ficaram
orgulhosas. Escolheram calças e saias bem justas. E se vestiram, como pede a
moda, de forma a destacar a preferência nacional.
Cada casal pegou as camisas e as bandeiras, com as palavras de ordem.
Chega de conversa, chega de esculhambação! Estava na hora de botar o país em
ordem!
Os casais combinaram de se encontrar na frente da Catedral, na Esplanada.
No caminho, vindo de carro, enquanto a mulher segurava sorridente a mão
de Gilvan, este pensava em Cleodete.
Não teve outra saída, senão terminar tudo. Ela não podia engravidar. Foi
de propósito! Ele ofereceu dinheiro, para abortar o filho. Conhecia uma boa
clínica. E proibiu ela de ter a criança. Não podia atrapalhar seu casamento.
Sua sorte é que Cleodete era ajuizada. Chorou muito. Mas não queria
confusão com um alto funcionário dos Correios.
Já João ficou pensando na noite no estacionamento, com o garoto.
Sentia-se culpado. Mais uma vez sem camisinha? O cara era dotado, uma chance
daquela não se perdia... Mas e se o garoto tivesse o vírus?
Não ia de jeito nenhum fazer o exame. Para quê ficar atraindo problema? O
negócio era a mulher... Não podia negar fogo, ela ia pensar o pior. Ia fazer
como? Usar camisinha com a própria esposa? Como ia explicar isso para ela?
E Gustavo... pensou na delícia que
foi a noite com a boneca.
Encontram-se os seis na frente das estátuas dos Evangelistas. Atrás,
subia imponente a Catedral Metropolitana, de um branco imaculado, emoldurada
pelo azul intenso do céu de Maio.
Uniram-se à movimentação, já grande àquela hora. A manifestação ia
começar.
Levantaram as faixas:
“CONTRA O ABORTO”
“PELA UNIÃO DA FAMÍLIA”
“FAMÍLIA É HOMEM E MULHER”
Cada vez mais pessoas engrossavam o movimento. E uniram-se a eles um
casal, também com uma faixa com dizeres parecidos. Um casal negro.
Ele vestia uma bata colorida. A mulher usava na cabeça um turbante verde,
e no corpo uma espécie de sári apertado. Os três amigos olharam logo a bunda. Que
a eles parecia balançar enquanto ela caminhava.
Cumprimentaram o companheiro de trabalho:
- E aí, Negão? – nem lembravam o nome dele, tão comum era o apelido...
E quando o casal negro se afastou... Os três casais olharam um para o
outro. Riram-se das roupas coloridas e exageradas.
Os homens trocaram olhares lascivos sobre a bela mulata...
E internamente os três amigos sentiram-se aliviados.
Eram todos brasileiros, todos misturados. Se tinham as suas vontades
exacerbadas, apesar de branquinhos...
Era por causa de um avô ou um bisavô negro. Em razão daquela
ancestralidade, colorida, carnavalesca, regada no pagode e no samba. E comum a
todos os brasileiros. Os três eram quase europeus, mas não eram frios. Tinham
sangue negro e quente.
Que culpa tinham?
E é assim que na mente de alguns faz morada, além do preconceito... a hipocrisia.
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