Pirei no Conto

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sexta-feira, 10 de abril de 2015

Na Calada da Noite






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               Gilvan Barbieri ligou para a mulher. “Sim, amor, tenho que ficar até mais tarde na firma.” Ouviu seu filho, ainda de meses, chorando ao fundo. A mulher pediu que ele, na volta do trabalho, trouxesse algo do mercado.
                Gilvan colocou o telefone de volta no gancho. Todos já tinham ido embora. Inclusive seu chefe. E Gilvan aproveitou para ligar, dali mesmo, para Cleodete.
                O encontro foi rápido, mas intenso. A pele negra daquela mulher contrastando com sua própria pele, clara como papel... aquela juba macia de cabelos crespos dela...
                Quando terminaram, Gilvan fumou um cigarro, e viu Cleodete se arrumando na frente do espelho, ainda nua. Gilvan deu um trago, e disse:
                - Vem cá, minha mulata-exportação!
                Cleodete olhou para ele de um jeito estranho, como quem comeu e não gostou.
                - Só se for você, pra exportar de volta pra Calábria. Viu, ô, Gilvan Barbieri...
                - Você adora... Não é à tôa que o papai tem esse brinquedo grandão aqui... é importado da Itália!
                - Ri. Ri mesmo. Pede mais uma vez pra eu alisar o cabelo, que eu já te mostro o que eu faço com o brinquedinho...
                Mas Gilvan já levantava da cama e agarrava Cleodete pelas costas. Mas ela se desfez do abraço.
                - Para! Vai voltar pra tua mulher, vai!
                - Ih, que é neguinha?...
                - E para de me chamar de “neguinha”. Tenho nome.
                - Ah, Cleodete! Que que é? Quer me encher o saco, agora?
                Gilvan já estava nervoso, e botava apressado as calças.
                Foi quando Cleodete, de uma vez, revelou logo o que a preocupava:
                - Gilvan, eu tô grávida.
                Enquanto isso, no Parque da Cidade, João Mariano olhava, por uma fresta do vidro do carro, quem se aventurava no estacionamento.
                Acabava de vir do happy-hour da firma, estava um pouco bêbado.
                O chão era esburacado, e ele precisava andar com o carro lentamente. Enquanto isso, vigiava os outros carros. Às vezes, algum emparelhava com o dele. Se fosse alguém bonito, ele se arriscava a baixar o vidro.
                Parou um rapaz branquinho, não mais de 30 anos. Fazia o estilo dele, bem europeuzinho. Era até meio ruivo.
                O garoto tomou a iniciativa:
                - O que você quer fazer?
                - Eu sou passivo. E você?
                - Eu sou ativo.
                - Quer encostar ali mais acima?
                Estacionaram o carro debaixo de uma árvore. E o garoto entrou no carro de João.
                João não tinha comprado camisinha. E aquele garoto tampouco.
                Já Gustavo Linsenbröder estava a caminho de casa. Tentou ligar para a mulher. Mas ela já dormia, e não atendeu.
E ele resolveu dar uma olhadinha no seu celular 4G.
Aquele dia tinha sido pesado. O que queria era relaxar.
                Encontrou na internet um site de acompanhantes.
                Cada boneca!  Uma delícia.
                Seus olhos verdes se hipnotizaram com uma das fotos. A bunda era perfeita.
E os outros atributos também. Quanto maior, melhor.
Ligou no número indicado. Perguntou quanto era o programa.
- 50 o boquete. 150 é o programa completo.
- Só pra me comer é quanto? – perguntou para a travesti.
E o loiro Gustavo, enquanto a mulher dormia, desviou o caminho do carro. Mas com destino certo.
No dia seguinte, os três amigos acordaram cedo. Cada um em sua casa. Gilvan, João e Gustavo.
Acordaram as mulheres. Tão orgulhosas dos maridos! Sempre trabalhando até tão tarde, ainda tinham disposição para acompanhar suas esposas nas lutas importantes para o país.
E cada uma em sua casa, elas escovaram os cabelos, naturalmente lisos, botaram a maquiagem de acordo com a pele branca. De porcelana!
Olharam no espelho o bumbum bem durinho, de horas de academia. Ficaram orgulhosas. Escolheram calças e saias bem justas. E se vestiram, como pede a moda, de forma a destacar a preferência nacional.
Cada casal pegou as camisas e as bandeiras, com as palavras de ordem. Chega de conversa, chega de esculhambação! Estava na hora de botar o país em ordem!
Os casais combinaram de se encontrar na frente da Catedral, na Esplanada.
No caminho, vindo de carro, enquanto a mulher segurava sorridente a mão de Gilvan, este pensava em Cleodete.
Não teve outra saída, senão terminar tudo. Ela não podia engravidar. Foi de propósito! Ele ofereceu dinheiro, para abortar o filho. Conhecia uma boa clínica. E proibiu ela de ter a criança. Não podia atrapalhar seu casamento.
Sua sorte é que Cleodete era ajuizada. Chorou muito. Mas não queria confusão com um alto funcionário dos Correios.
Já João ficou pensando na noite no estacionamento, com o garoto. Sentia-se culpado. Mais uma vez sem camisinha? O cara era dotado, uma chance daquela não se perdia... Mas e se o garoto tivesse o vírus?
Não ia de jeito nenhum fazer o exame. Para quê ficar atraindo problema? O negócio era a mulher... Não podia negar fogo, ela ia pensar o pior. Ia fazer como? Usar camisinha com a própria esposa? Como ia explicar isso para ela?
E Gustavo...  pensou na delícia que foi a noite com a boneca.
Encontram-se os seis na frente das estátuas dos Evangelistas. Atrás, subia imponente a Catedral Metropolitana, de um branco imaculado, emoldurada pelo azul intenso do céu de Maio.
Uniram-se à movimentação, já grande àquela hora. A manifestação ia começar.
Levantaram as faixas:
“CONTRA O ABORTO”
“PELA UNIÃO DA FAMÍLIA”
“FAMÍLIA É HOMEM E MULHER”
Cada vez mais pessoas engrossavam o movimento. E uniram-se a eles um casal, também com uma faixa com dizeres parecidos. Um casal negro.
Ele vestia uma bata colorida. A mulher usava na cabeça um turbante verde, e no corpo uma espécie de sári apertado. Os três amigos olharam logo a bunda. Que a eles parecia balançar enquanto ela caminhava.
Cumprimentaram o companheiro de trabalho:
- E aí, Negão? – nem lembravam o nome dele, tão comum era o apelido...
E quando o casal negro se afastou... Os três casais olharam um para o outro. Riram-se das roupas coloridas e exageradas.
Os homens trocaram olhares lascivos sobre a bela mulata...
E internamente os três amigos sentiram-se aliviados.
Eram todos brasileiros, todos misturados. Se tinham as suas vontades exacerbadas, apesar de branquinhos...
Era por causa de um avô ou um bisavô negro. Em razão daquela ancestralidade, colorida, carnavalesca, regada no pagode e no samba. E comum a todos os brasileiros. Os três eram quase europeus, mas não eram frios. Tinham sangue negro e quente.
Que culpa tinham?
E é assim que na mente de alguns faz morada, além do preconceito... a hipocrisia.

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