Pirei no Conto

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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Licença para o Minuto do Comercial




            Grassavam  os anos cinquenta.
Arlene, nos seus 18 aninhos, acabava de chegar do interior de Santa Catarina para a cidade grande. Mas teve sorte: conseguiu um trabalho de caixa em um mercadinho, perto da pensão onde morava.
                Aqueles olhos verdes de ascendência alemã chamaram a atenção no novo emprego. O que não faltava era paquera chata na fila do caixa.
                - Não sabia que o bombom agora ficava aqui...
                - Esqueci a goiabada, mas achei o queijo do meu Romeu e Julieta!
- Com esse doce-de-leite, até esqueço da dieta!
Mas Arlene, que podia ser bonita, mas era também bem espertinha,  logo aprendeu a se defender:
- Pé-de-moça tá em falta, mas tapa na cara tá sobrando.
- Se você for na seção de legumes, já, já eu acho algum que resolve o seu problema.
Então foi com algum susto que um fotógrafo descobriu aquela beldade - um tanto indomada -  no mercadinho do bairro. Quase leva um tapa ao convidá-la para uma sessão de fotos. Era para uma campanha de publicidade.
Arlene não gostou muito. Era moça direita. Que história de sessão de fotos era essa? Mas eis que as colegas da pensão queriam lhe fazer a cabeça:
- Vai que você fica famosa?
E Arlene era tudo, mas não era boba. Pensou logo foi no dinheiro. Quem sabe um mês de pensão paga? Adiantava alguma coisa. E se convenceu.
No dia das fotos, viu aquela fila de modelos esperando a vez. Quase foi embora! Por certo não tinha chance! Mas antes que pudesse se levantar, o fotógrafo chamou seu nome.
O figurino era o mesmo para todas as modelos. Um vestido rendado, um sapatinho preto com meia alta, o cabelo preso em um coque e, muito estranho, tinha que segurar um balde d’água na cabeça.
Ficou linda! Perfeita! Parecia uma camponesa alemã!
E foi dessa forma que Arlene se tornou, nada mais, nada menos, do que a garota da lata do Leite Moça.
As donas de casa ficaram logo afoitas com aquele novo produto. Leite condensado! Na latinha! Tão prático!
Mas algumas, mais carolas, se enciumavam um tanto daquela moça solteira no rótulo.
Já os homens ficavam doidinhos. Aquela moça, naquele vestidinho, com ar de ingênua...
Era um verdadeiro fetiche.
Começaram a chover cartas para a Nestlé. Até proposta de casamento pintou para Arlene!
Ela começou a se sentir incomodada. Era moça de família. Ali, exposta, solteira...
Até a mãe de Arlene escreveu à filha. Dizia que na sua casa não entrava mais leite condensado. Ora, onde já se viu?...
Mas Arlene, tão jovem, já era bem independente.
Depois de algum tempo de flerte, à moda antiga, começou a namorar o fotógrafo que a descobriu, cujo nome era Homero.
Os tempos estavam mudando. No rádio, começava a tocar a Jovem Guarda, e Roberto Carlos dirigia um carro vermelho sem espelho para se pentear.
E Arlene, em um arroubo de modernidade, foi morar junto com Homero. Só ela e seu amor, sem papel passado, segundo suas próprias regras.
Sua mãe reprovou, claro. Mas Arlene rompeu com ela e foi viver o seu amor.
Por fim, Homero arranjou um novo trabalho para Arlene. A publicidade precisava de uma nova imagem, para a mulher moderna e dona da própria vida que despontava.
Arlene pintou o cabelo, fez um corte assim com uma franjinha, vestiu um pulôver.
E foi a escolhida para ser a garota dos palitos Gina.
Os palitos Gina iam muito além de palitar os dentes. Eram o típico produto para a nova mulher.
Auxiliavam-na no seu happy-hour com os colegas de trabalho. Na hora de convidar a turma do fim-de-semana para uma pizza. Ou para ajudar a colocar a azeitona na bebida do seu amor à beira de uma lareira.
Esta era a mulher de Gina!
Muito feliz, Arlene continuou seu trabalho por muitos anos. Foi mãe de família em lata de cereal, esportista em caixa de leite, e em um momento de necessidade, foi o rótulo da aguardente Chora Rita.
Este último trabalho na verdade lhe abriu portas. Com quase quarenta anos, já estava perdendo um pouco da beleza que lhe fizera a fama. Mas tinha a mesma personalidade marcante de antes.
Além disso, naquela época o país já tinha saído da liberação de costumes e caído no puro desbunde, ao som da discoteca.
E Arlene virou mais uma vez a mulher do momento, no rótulo da Catuaba Selvagem.
Aquela imagem de rainha bárbara colocou Arlene outra vez no centro das atenções.
Mas de repente, Arlene sentiu-se mal. Não tinha ido um pouco longe demais? Subido a cabeça? Ver agora a sua imagem em qualquer bar, à mão de qualquer boêmio...
E no auge, Arlene abandonou tudo, e deixou Homero. Voltou para o interior de Santa Catarina. Virou evangélica e casou-se com um bom partido: um gerente do Banco do Brasil.
Agora, após tantos anos, Arlene já está velhinha. Hoje em dia tem uma vida tranquila, com filhos e netos. E aposentou-se do glamour de outrora.
Às vezes bate uma saudade. E Arlene, escondida, compra uma lata de Leite Moça na esquina. E no quarto, sozinha, olha horas a fio, a suspirar por aquela garota tão cheia de vida.
Mas observa com carinho uma de suas netinhas, a Carolina. Está seguindo os passos da avó.  Pois, quem diria, tão criança e já posou para a foto da família na tampa de margarina.