Quem
ama o feio bonito lhe parece, diz o ditado.
Mas
ninguém amava Alberto. Na verdade, antes do acidente Alberto era alguém comum: nem
feio, nem bonito. Simpático, talvez. Mas caíra de um andaime, durante a
construção de um edifício.
Diziam
a ele: “você teve sorte, daquela altura, podia ter morrido!”.
De
fato, tivera apenas um braço quebrado. Mas também um afundamento permanente em
uma das maçãs do rosto, entortando e afundando também o nariz e a boca, no lado
esquerdo.
Tornou-se
estranho olhar para Alberto. Era como uma figura de desenho animado, plástica,
a quem alguém resolvera mover parte do rosto para um só lado. Seria risível,
não fosse triste.
Depois
do acidente, Alberto não teve mais coragem de olhar-se no espelho. E começou a
deixar a barba crescer.
Tornou-se
mais recluso. Alguns amigos tentaram animar Alberto, levando-o a bares e boates. Mas Alberto lá chegava,
sentava em um canto, calado, e observava a tudo resignado.
Alguém
dizia: “olha, Alberto, veja lá aquela moça!”. Mas assim que Alberto mirava a mulher
a quem apontavam, ela logo desviava o olhar. Às vezes, com ar de nojo.
Alberto
nunca tivera namorada, e tinha pouco mais de vinte anos. E agora, tão novo, parecia a ele que não lhe
restava a menor esperança.
Começou
a fumar e descuidar do quarto na pensão onde morava. Não varria mais o chão,
onde se acumulava a poeira e bitucas de cigarro. As roupas eram jogadas a esmo.
No quarto não havia janelas, deixando o ar ainda mais carregado. O senhorio
começou a reclamar do mau cheiro.
Alberto
ainda trabalhava. Por pena, empregaram-no como office-boy no escritório daquela
construtora. Mas às vezes chegava tarde, e levava bronca do chefe. Mas o chefe
sabia das dificuldades de Alberto, e fazia vista grossa. Ao menos, Alberto, com
todas as dificuldades, continuava a trabalhar bem. E ficava à disposição até
mais tarde, para um trabalho extra, caso precisassem.
Mas
não era necessariamente para ajudar a empresa que Alberto trabalhava tanto, e
ficava até tão tarde às vezes: era o medo de retornar para casa, para a solidão
e para o vazio cada vez maiores que dominavam seu peito, assim que atravessava a
porta da pensão onde morava.
Alberto
saía sempre à noite do trabalho, quando as ruas estavam vazias, quase sem
ninguém. Pegava o ônibus, e antes de chegar em casa, ia a um bar perto dali.
Comprava um maço de cigarros, uma latinha de cerveja, enquanto olhava soturno
para o vazio. Pelo que ele já fora, mas já não era mais. Pelas oportunidades
para sempre perdidas.
Uma
vez Alberto bebeu tanto que saiu trôpego dali. Mal conseguiu chegar em casa.
Subiu
as escadas da pensão com dificuldade.
Foi
direto ao banheiro coletivo, passar uma água no rosto. Quando acendeu a luz,
ela refletiu numa lâmina de barbear, abandonada por alguém na beirada da pia.
Pegou
a lâmina nas mãos, viu seu rosto ali refletido. Permaneceu assim por um longo
minuto. Sentou-se sobre a tampa da privada, aquele objeto metálico e cortante
entre os dedos.
Passou-se
mais um minuto. E outro ainda.
E
por fim, Alberto calmamente colocou de volta a lâmina sobre o local onde a
encontrara.
Alberto
caminhou até sua porta, e atabalhoadamente conseguiu enfiar a chave na
fechadura. Entrou no quarto, onde havia pouco mais de uma cama, um armário e
uma cadeira, e deitou-se abruptamente, sem sequer trocar a roupa ou tirar os
sapatos. E adormeceu instantaneamente.
Passaram-se
algumas horas, quando Alberto por fim despertou. Ainda era de noite.
Ele
levantou-se com dificuldade da cama. Deixara a porta do quarto aberta. Caminhou
até o banheiro. Estava com sede. Abriu a torneira, e tomou alguns goles d´água.
Quando
levantou a cabeça, não pôde evitar olhar-se no espelho. E viu nele não o rapaz
acidentado de outrora, mas um anjo, alguém divino, quase diáfano, inumano! Era
ele mesmo, com seus próprios traços. Mas de uma beleza perfeita, de linhas
desenhadas pelo mais inspirado artista, de proporções áureas e simetria
exemplar!
Alberto
não conseguia tirar as vistas do espelho.
Passou
as mãos pela face e pela barba mal feita, sem acreditar.
Colocou
um casaco. Saiu da pensão e desceu as escadas. Foi ao bar, ainda aberto.
Quando
entrou, todos imediatamente viraram-se para ele, magnetizados por sua beleza.
Homens e mulheres.
Sentou-se
em uma cadeira no balcão, pediu uma cerveja, tirando uma nota amarrotada de
dentro do bolso.
A
atendente do balcão retrucou, botando uma das mãos sobre a de Alberto, que
segurava o dinheiro.
-
Guarde. É por conta da casa.
E
Alberto pôde sentir o polegar da atendente encostando-se a sua pele, fazendo um
carinho pegajoso. Isso agradou de certa forma Alberto, tão carente estava, mas
de fato lhe deu uma nova sensação, que ainda não experimentara com as mulheres:
um profundo asco.
Sentia-se
ainda incomodado com o olhar das outras pessoas. Era algo também novo. Alguns admiravam
com paixão. Outros pareciam desnudá-lo com os olhos. E alguns ainda o
observavam com ar de vítima, como se ele fosse um ser inalcançável.
Mas
ao virar-se, todos tentavam disfarçar, continuando suas conversas. E sentia no
ar uma vontade de aproximarem-se dele, misturada a um forte receio e dúvida.
A
atendente trouxe para ele a cerveja. Ele fez cara de nojo quando ela olhou para
ele daquela maneira. Ela percebeu, e
reagiu perguntando de forma grosseira e arrogante, para manter um pouco de dignidade, se ele queria mais
alguma coisa. Com a fala cerrada entre os dentes, ele respondeu que não.
Incomodado
com aqueles olhares, Alberto tomou a cerveja quase em um gole só. E voltou para
casa.
No
dia seguinte, quando voltou ao trabalho, os mesmos colegas que nunca davam
bom-dia para Alberto eram tão simpáticos com ele!
“Foi
cirurgia?”
“Você
melhorou muito!”
“Você
está tão bonito!”
Ninguém
estranhou que Alberto aparecesse com uma aparência tão diferente do dia para a
noite. Alberto fora, até aquele momento, alguém invisível, a quem as pessoas
não davam importância.
Mas
agora o oprimia aquela amabilidade forçada, como se todos quisessem ser seus
grandes amigos.
Conversou
com seu chefe. Pelo menos ele tinha uma relação sincera com Alberto.
O
chefe, sim, estranhou a mudança repentina. Perguntou para Alberto o que
acontecera. Ele balbuciou alguma explicação confusa, sobre um tratamento
médico. Percebendo que o questionamento incomodava Alberto, o chefe deu-se por
satisfeito. Sabia do sofrimento de seu empregado.
Mas,
na realidade, assim que Alberto entrara na seção, despertara em seu chefe a
mais sincera paixão.
(Continua na 2a parte de "A Flor Orvalhada da Manhã")
(Continua na 2a parte de "A Flor Orvalhada da Manhã")
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