Pirei no Conto

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Drama: A Flor Orvalhada da Manhã - 1a parte



Quem ama o feio bonito lhe parece, diz o ditado.
Mas ninguém amava Alberto. Na verdade, antes do acidente Alberto era alguém comum: nem feio, nem bonito. Simpático, talvez. Mas caíra de um andaime, durante a construção de um edifício.
Diziam a ele: “você teve sorte, daquela altura, podia ter morrido!”.
De fato, tivera apenas um braço quebrado. Mas também um afundamento permanente em uma das maçãs do rosto, entortando e afundando também o nariz e a boca, no lado esquerdo.
Tornou-se estranho olhar para Alberto. Era como uma figura de desenho animado, plástica, a quem alguém resolvera mover parte do rosto para um só lado. Seria risível, não fosse triste.
Depois do acidente, Alberto não teve mais coragem de olhar-se no espelho. E começou a deixar a barba crescer.
Tornou-se mais recluso. Alguns amigos tentaram animar Alberto, levando-o  a bares e boates. Mas Alberto lá chegava, sentava em um canto, calado, e observava a tudo resignado.
Alguém dizia: “olha, Alberto, veja lá aquela moça!”. Mas assim que Alberto mirava a mulher a quem apontavam, ela logo desviava o olhar. Às vezes, com ar de nojo.
Alberto nunca tivera namorada, e tinha pouco mais de vinte anos.  E agora, tão novo, parecia a ele que não lhe restava a menor esperança.
Começou a fumar e descuidar do quarto na pensão onde morava. Não varria mais o chão, onde se acumulava a poeira e bitucas de cigarro. As roupas eram jogadas a esmo. No quarto não havia janelas, deixando o ar ainda mais carregado. O senhorio começou a reclamar do mau  cheiro.
Alberto ainda trabalhava. Por pena, empregaram-no como office-boy no escritório daquela construtora. Mas às vezes chegava tarde, e levava bronca do chefe. Mas o chefe sabia das dificuldades de Alberto, e fazia vista grossa. Ao menos, Alberto, com todas as dificuldades, continuava a trabalhar bem. E ficava à disposição até mais tarde, para um trabalho extra, caso precisassem.
Mas não era necessariamente para ajudar a empresa que Alberto trabalhava tanto, e ficava até tão tarde às vezes: era o medo de retornar para casa, para a solidão e para o vazio cada vez maiores que dominavam seu peito, assim que atravessava a porta da pensão onde morava.
Alberto saía sempre à noite do trabalho, quando as ruas estavam vazias, quase sem ninguém. Pegava o ônibus, e antes de chegar em casa, ia a um bar perto dali. Comprava um maço de cigarros, uma latinha de cerveja, enquanto olhava soturno para o vazio. Pelo que ele já fora, mas já não era mais. Pelas oportunidades para sempre perdidas.
Uma vez Alberto bebeu tanto que saiu trôpego dali. Mal conseguiu chegar em casa.
Subiu as escadas da pensão com dificuldade.
Foi direto ao banheiro coletivo, passar uma água no rosto. Quando acendeu a luz, ela refletiu numa lâmina de barbear, abandonada por alguém na beirada da pia.
Pegou a lâmina nas mãos, viu seu rosto ali refletido. Permaneceu assim por um longo minuto. Sentou-se sobre a tampa da privada, aquele objeto metálico e cortante entre os dedos.
Passou-se mais um minuto.  E outro ainda.
E por fim, Alberto calmamente colocou de volta a lâmina sobre o local onde a encontrara.
Alberto caminhou até sua porta, e atabalhoadamente conseguiu enfiar a chave na fechadura. Entrou no quarto, onde havia pouco mais de uma cama, um armário e uma cadeira, e deitou-se abruptamente, sem sequer trocar a roupa ou tirar os sapatos. E adormeceu instantaneamente.
Passaram-se algumas horas, quando Alberto por fim despertou. Ainda era de noite.
Ele levantou-se com dificuldade da cama. Deixara a porta do quarto aberta. Caminhou até o banheiro. Estava com sede. Abriu a torneira, e tomou alguns goles d´água.
Quando levantou a cabeça, não pôde evitar olhar-se no espelho. E viu nele não o rapaz acidentado de outrora, mas um anjo, alguém divino, quase diáfano, inumano! Era ele mesmo, com seus próprios traços. Mas de uma beleza perfeita, de linhas desenhadas pelo mais inspirado artista, de proporções áureas e simetria exemplar!
Alberto não conseguia tirar as vistas do espelho.  
Passou as mãos pela face e pela barba mal feita, sem acreditar.
Colocou um casaco. Saiu da pensão e desceu as escadas. Foi ao bar, ainda aberto.
Quando entrou, todos imediatamente viraram-se para ele, magnetizados por sua beleza. Homens e mulheres.
Sentou-se em uma cadeira no balcão, pediu uma cerveja, tirando uma nota amarrotada de dentro do bolso.
A atendente do balcão retrucou, botando uma das mãos sobre a de Alberto, que segurava o dinheiro.
- Guarde. É por conta da casa.
E Alberto pôde sentir o polegar da atendente encostando-se a sua pele, fazendo um carinho pegajoso. Isso agradou de certa forma Alberto, tão carente estava, mas de fato lhe deu uma nova sensação, que ainda não experimentara com as mulheres: um profundo asco.
Sentia-se ainda incomodado com o olhar das outras pessoas. Era algo também novo. Alguns admiravam com paixão. Outros pareciam desnudá-lo com os olhos. E alguns ainda o observavam com ar de vítima, como se ele fosse um ser inalcançável.
Mas ao virar-se, todos tentavam disfarçar, continuando suas conversas. E sentia no ar uma vontade de aproximarem-se dele, misturada a um forte receio e dúvida.
A atendente trouxe para ele a cerveja. Ele fez cara de nojo quando ela olhou para ele daquela maneira. Ela percebeu, e reagiu perguntando de forma grosseira e arrogante, para manter  um pouco de dignidade, se ele queria mais alguma coisa. Com a fala cerrada entre os dentes, ele respondeu que não.
Incomodado com aqueles olhares, Alberto tomou a cerveja quase em um gole só. E voltou para casa.
No dia seguinte, quando voltou ao trabalho, os mesmos colegas que nunca davam bom-dia para Alberto eram tão simpáticos com ele! 
            “Foi cirurgia?”
“Você melhorou muito!”
“Você está tão bonito!”
Ninguém estranhou que Alberto aparecesse com uma aparência tão diferente do dia para a noite. Alberto fora, até aquele momento, alguém invisível, a quem as pessoas não davam importância.
Mas agora o oprimia aquela amabilidade forçada, como se todos quisessem ser seus grandes amigos.
Conversou com seu chefe. Pelo menos ele tinha uma relação sincera com Alberto.
O chefe, sim, estranhou a mudança repentina. Perguntou para Alberto o que acontecera. Ele balbuciou alguma explicação confusa, sobre um tratamento médico. Percebendo que o questionamento incomodava Alberto, o chefe deu-se por satisfeito. Sabia do sofrimento de seu empregado.
Mas, na realidade, assim que Alberto entrara na seção, despertara em seu chefe a mais sincera paixão.

(Continua na 2a parte de "A Flor Orvalhada da Manhã")

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