Pirei no Conto

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Drama: A Flor Orvalhada da Manhã - 2a parte



A ética de seu chefe era manter o profissionalismo. Era uma pessoa séria. Mas era também humano. E o fundo de suas retinas não podia, como o resto do corpo tentava, evitar trair seu verdadeiro sentimento.
Após a breve conversa, o chefe procurou tratá-lo normalmente. Apesar de Alberto perceber que, para alguns trabalhos mais pesados, evitava indicar a ele, com um sorriso amarelado.
Naquele dia, Alberto teve um grande alívio, por não ser mais julgado, mas suportou um peso enorme com aqueles olhares excessivos, enquanto andava pela empresa para exercer seu trabalho. Mas também tinha uma ponta de orgulho: afinal, parecia realmente bonito.
Ao final do expediente, saiu mais cedo: resolveu experimentar voltar para casa, ainda na luz do dia. Os mesmo olhares, da noite anterior e do trabalho, mais uma vez o perseguiam. Alberto tomou coragem, e inflou o peito. Imaginava que agora nada podia temer.
E em seu orgulho, agiu com exagero: quando uma mulher perguntou-lhe as horas, Alberto retrucou, grosseiro e quase gritando, que não tinha relógio. A mulher pareceu desconcertada, mas depois abriu um sorriso envergonhado, pediu desculpas e seguiu seu caminho.
Outra novidade: normalmente, mesmo quando Alberto era gentil, muitas pessoas tratavam-no mal, ou o ignoravam completamente.
Não eram todas é claro: havia pessoas que até então viam em Alberto algo além de seu rosto desconfigurado. Eram amigos, pessoas que realmente gostavam dele. Mas os desconhecidos... Destes, tinha que lidar com a ignorância e a estupidez de nossa espécie.
Mas, mesmo que tivesse esses poucos amigos, foi só depois de mudar de aparência que Alberto foi convidado a exercer um trabalho de verdade na firma.
E com isso, Alberto comprou roupas um pouco melhores. Passou a fazer a barba, a cuidar-se e a dormir melhor. Parou de fumar, e alimentava-se bem. O que só contribuiu para sua aparência tornar-se ainda mais atraente.
 Um dia Alberto caminhava na rua, e sentiu que alguém o perseguia. Finalmente um senhor alcançou-o e lhe deu-lhe um cartão:
RAFAEL MEDEIROS
PRESTIGE MODELS
O senhor lhe explicou que era um olheiro, de uma das maiores agências de modelos do país. E pediu para procurá-lo, se fosse de interesse.
Alberto leu mais uma vez o cartão. E ficou na dúvida.
Na manhã seguinte resolveu ligar do trabalho. Se fosse mau negócio, era só cair fora. Mas quem sabe a sorte não havia sorrido para ele?
E foi assim que Alberto tornou-se modelo profissional.
Começou fazendo pequenos trabalhos. Mas logo decolou. Não era só a beleza. Havia algo em Alberto que transbordava, inebriava... não era somente sexo, mas algo que entrava pelas pupilas, e imprimia dentro de cada um que o encontrava a perfeição por toda a vida procurada e nunca expressa de fato. O verdadeiro e tão negado desejo de cada um de nós. A promessa de completude nunca alcançada.
Era isso que emocionava bookers, fashionistas, editores de moda, estilistas. Cada um via nele aquilo que mais internamente queria.
Mas algo estranho às vezes acontecia. Quando voltava a vestir suas roupas, depois de um ensaio fotográfico, sentia falta de alguma peça. Em geral algo pequeno, como um lenço, ou um cachecol nos dias mais frios. Mas uma vez levaram até sua roupa íntima.
Com tamanho carisma, surgiam novos trabalhos. Capas de revistas, editoriais de moda... logo Alberto foi chamado para aparecer na televisão.
E então novelas, minisséries, programas de auditório. E-mails vinham aos montes, e até mesmo cartas àquela emissora.
Alberto recebia cada vez mais convites.
Mas a essa altura, muitos destes convites eram não profissionais.
No início ele recusava. Acostumara-se àqueles olhares sempre estranhos, sempre desejosos. Nem se importava mais.
Apesar de observar que era cada vez mais assediado.  Algumas vezes recebia cantadas descaradas na rua. Em outras, levava um beliscão no braço. 
Uma vez, estava com uma camiseta cavada, caminhando no parque. E levou de novo um beliscão, de alguém que fazia cooper. Mas desta vez a mulher enfiou a unha, e tirou sangue. Ela apertou o passo da corrida, afastando-se rapidamente, antes que Alberto pudesse esboçar uma reação. 
Mas Alberto pôde ver, por um relance, aquela mulher com um enorme ar de satisfação.
Por isso, começou a temer por aqueles convites. Tinha medo do que poderiam fazer com ele. Temia também não saber mais quem era. Porque ao mesmo tempo estava muito tentado a se entregar àqueles prazeres. Eram pessoas bonitas, interessante... Difícil não aceitar.
Nos bastidores, os elogios repetiam-se. Os flertes também.
“Sou realmente bonito. Por que não dar a eles o que desejam, e aproveitar-me disso?”
E Alberto começou a dizer sim a quem lhe propusesse algo além das câmeras e dos refletores.
Mas ele, que pensou que receberia todo o prazer da carne que a vida até então lhe havia negado, percebeu que não passava de um objeto, de um fantoche, de um fetiche nas mãos de outros.
Por que não era a Alberto que desejavam. Mas àquela casca, àquela beleza, onde projetavam seus desejos mais insanos!
E os convites tornaram-se cada vez mais pesados: primeiro, mulheres, depois homens, sexo a três, até sadomasoquismo. Pediam a ele que os humilhassem, pisassem, batessem.
Por fim, surgiram as orgias, cada vez mais frequentes.
Quando recuava, era cobrado, chantageado, acusado. Cancelariam sua participação em uma novela. Espalhariam suas faltas à imprensa, faminta por artistas em decadência.
Tudo isso atordoava Alberto, e ele já não sabia se dizia “sim” por seu próprio desejo, ou por medo das ameaças.
E assim como o desejo das pessoas aumentava cada vez mais, também a pressão contra Alberto subia, cada vez maior.
Uma vez, na madrugada, nu à beira da janela da suíte mais cara, do hotel mais luxuoso da cidade, Alberto sentiu algo há tanto tempo esquecido: aquele vazio no peito, aquele desespero e solidão presentes em sua antiga vida.
Procurou e encontrou, na mesa de cabeceira, um maço de cigarros abandonado. Ao lado, empilhavam-se os corpos suados de vários homens e mulheres, cansados do bacanal que ocorrera durante a noite.
Fumou na varanda até a primeira luz do amanhecer.
Resolveu vestir-se, os outros ainda dormindo. E desceu o elevador, para procurar uma padaria, atrás de um bom café.
Mas quando pisou na rua, ela já estava cheia de pessoas indo para o trabalho. E quando o viram, sentiram-se atraídas de tal forma por Alberto, que não podiam nada fazer, se não aproximar-se.
A beleza de Alberto era como uma flor frágil, de pétalas delicadas e doçura inefável, cujo orvalho brilhava sob a luz da manhã.
Tão bela... até que um de nós humanos, em nosso egoísmo, resolvamos colhê-la, tomando-a para nós, e destruindo-a para sempre. Não somos generosos o suficiente para deixar a flor viver. Temos que tosar-lhe a vida, tentando tomar a flor para nós.
E foi assim com Alberto. Pobre rapaz. As pessoas na rua chegavam cada vez mais, cercando-o, encantadas com ele.
Queriam-no para si. Puxavam-no. Arrancaram sua roupa, fazendo-a em pedaços. Por fim tocaram sua pele nua, macia, de um tom brilhante e sem máculas. E rasgaram sua carne, cada um sedento por um pedaço, até que sobrasse nada além de uma poça de sangue sobre as pedras da calçada.



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