Pirei no Conto

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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Conto de Terror: "A Herança" - 2a parte



A chuva ficara mais forte. Augusto viu pelo painel que o tanque já estava quase vazio. Assim que viu um posto, resolveu parar o carro.
Atendeu-o um homem corpulento, a pele do rosto oleosa. Andava vagarosamente, com dificuldade, e usava um bigodinho estranho sob o nariz pequeno. O conjunto lembrava um buldogue, manso e apático. Falou com Augusto de má vontade:
- Gasolina?
- Enche o tanque, por favor.
Enquanto aguardava o abastecimento, Augusto pôde observar a loja de conveniência. Um garoto franzino lia descuidado uma revista por trás do balcão. Ao lado do posto, a estrada estendia-se solitária nas duas direções.
Augusto acendeu mais um cigarro. O atendente do posto olhou reprovando Augusto, mas deu de ombros. A chuva caía pesada.
Um pensamento passou repentinamente pela mente de Augusto:
“São 34 cadernos, numerados e organizados em ordem crescente -  e eu tenho 34 anos.”
Abriu a porta do carro, e procurou na caixa a caderneta correspondente. A de número 34. Ali estava.
Abriu repentinamente o meio do caderno. Só havia uma frase na página em que abriu:

“Não aguentou de curiosidade, não é meu filho?”

Augusto deixou o cigarro cair no chão.  Jogou o caderno abruptamente dentro do carro. Sua mão tremia. Buscou outro cigarro, sem conseguir acender, o vento forte insistia em apagar o isqueiro.
Por fim conseguiu acendê-lo, deu uma tragada profunda. Entrou no carro, ligou o motor, e arrancou.

*                                                      *                                                      *

                Nayara por fim decidiu não mexer na maleta. Sentiu-se invadindo o espaço do marido. Alguém que vivera o que ele viveu tinha suas dores, e talvez seus segredos. E quando ele precisasse, sabia que podia contar com ela para abrir-se.
                Nayara fechou a maleta, e pegou-a pela alça, com a intenção de guarda-la no armário. No entanto, ao levantar-se, o fecho da maleta ficou mal preso, e ela abriu-se completamente, deixando derrubar uma série de papéis no chão.
                Ao tentar arrumar os papéis, Nayara deparou-se com uma foto. Ela tinha o tamanho de um cartão postal, e era do rosto de uma menina, com longos cabelos loiros.
Nayara virou a foto. No verso estava escrito a caneta:
                MARIA, 5 ANOS. ORFANATO PIO XII.
                Reconhecia a letra. Era de Augusto.
                O Orfanato Pio XII era o único orfanato da cidade.
                Nayara sentiu as pernas tremerem. Sentou-se novamente na poltrona.
                Alguns anos depois de seu casamento com Augusto, eles tiveram uma crise, e o marido ficara dois dias fora de casa, com amigos. No fim, havia sido uma briga boba, e eles fizeram as pazes, o que só fortaleceu a relação.
                Por isso, alguns dias depois, ela fingiu não ouvir nada quando, enquanto tomava café com sua irmã, esta disse, como se fosse do conhecimento de Nayara, que Augusto dormira na casa de uma antiga namorada.
Inconscientemente ignorou aquilo, como se não tivesse escutado de verdade, e continuou a conversar normamente sobre um outro assunto banal.
                Mas naquele momento, esse pequeno pensamento era impossível de ignorar.
                “O Augusto dormiu na casa da ex dele.”
                A briga entre Nayara e Augusto fora há exatos cinco anos. A mesma idade da garota na foto.
                O barulho de um trovão tirou Nayara de seus pensamentos. A tempestade ficava mais forte. Acendeu a luz do abajur, estava ficando escuro no quarto.
                E ficou olhando para aquele relampejar contínuo fora de casa, mirando pela chuva. Ouviu o motor de um carro ao longe. Esperava que já fosse Augusto.
                “Temos muito o que conversar” – refletiu.

                *                                                    *                                                      *

Os relâmpagos iluminavam brevemente o interior do carro de Augusto, que depois mergulhava novamente na escuridão. Os cadernos estavam no banco do carona. Augusto não tinha coragem de tocá-los.
Por fim viu a placa referente ao seu bairro. Virou uma esquina. Foi até o fim da rua. Os vizinhos haviam saído, na rua somente a janela de sua casa ainda estava acesa. Devia ser sua esposa esperando com seu filho, aguardando sua volta.
Augusto estacionou na garagem do sobrado, ao lado do carro da mulher. Desligou o carro, puxou o freio de mão. Somente ouvia o barulho da chuva do lado de fora, e os trovões, cada vez mais próximos.
Precisava colocar um ponto final naquilo. Coincidência. Tudo coincidência. Era a loucura. A loucura da sua mãe. Em um ato desesperado, Augusto virou-se até a caixa, e procurou novamente aquele último caderno.
Abriu na última página. No fim do diário. No caderno 34. A mesma idade dele.
Leu a data do último dia.
“Meu Deus” – pensou apavorado – “é o dia de hoje”.

                    *                                          *                                        *

Anos depois.
A enfermeira Ana Clara entrou na sala do doutor Ângelo Bismarck. Ele era chefe da ala psiquiátrica do hospital. Um jovem em ascensão, com não mais de quarenta anos. Ângelo era confiante e prático para lidar com os pacientes.
Ana Clara era enfermeira no hospital havia vinte anos, experiente e dedicada. E ao contrário da opinião geral, considerava o doutor Ângelo prepotente e um tanto mimado.
- Doutor, como o senhor já deve saber, aquele garoto...
- O Júnior...
- Sim, o Júnior. Ele não deixou nenhum pertence.
- Hum-hum.
- Exceto por uma caixa cheia de cadernos velhos.
- Estão em bom estado?
- Pode-se dizer que sim.
- Doe para uma escola.
- Doar?
- Claro. O que há demais?
- Não sei doutor. Nunca gostei daquela caixa. Ele olhava aqueles cadernos sem parar.
- Apenas um sintoma da esquizofrenia.
- Sim, eu sei – detestava quando os médicos tratavam os enfermeiros como ignorantes. Porém continuou no mesmo tom profissional.
- Mas seria adequado doar? Ainda mais para crianças?
- O que você faria?
- Jogaria fora. Eles me dão arrepios.
O doutor Ângelo deu uma risadinha de lado.
- Ora, enfermeira. Deixe de crendices. Isso é um hospital. Ele foi enterrado ontem, o que se pode fazer? Deixe de conversa. Doe logo esses cadernos.
- Sim, senhor – respondeu Ana Clara, tentando não demonstrar emoção. Mas sentia as veias do pescoço dilatarem-se. Dentre todos os médicos, o doutor Ângelo era o que mais a irritava.
A enfermeira saiu da sala, e desceu as escadas até a ala de internação. Parou em frente ao quarto de Júnior. Sentia o coração batendo forte. Respirou profundamente, e recompôs seus sentimentos. Por fim entrou.  A janela estava aberta, e por trás das grades, a luz do sol revelava um dia radiante lá fora.
Viu a poça de sangue no chão. O sangue já estava coagulado, as moscas sobrevoando e pousando.
“Ainda não limparam isso, desde ontem?” – perguntou-se, a respiração ofegante.
Chamou a servente no corredor. Enquanto ela limpava o chão, Ana Clara lembrou-se de Júnior. Lamentou sua sorte.
Era um órfão, filho de uma família com histórico de loucura. Loucura que trouxera a tragédia a todos seus integrantes.
Seu caso era famoso na cidade. Sua avó ficara internada naquele mesmo hospital psiquiátrico, da juventude até sua velhice. Após a sua morte, sua única herança era uma caixa cheia de cadernos.
Seu pai, Augusto, nunca conhecera a própria mãe. Mas após a morte natural da mãe resgatara aqueles cadernos no hospital. Mas naquela mesma tarde de tempestade, cedera, após uma vida toda de normalidade, à sua herança maldita.
Teve um surto psicótico, matando a mulher e a si mesmo na frente do filho de sete anos, com uma faca de cozinha.
Júnior, o filho, fora adotado por um tio, irmão de sua mãe.
Mas após um mês na casa desse parente, um vizinho encontrou Júnior sentado no meio-fio da rua, olhando inerte para o vazio, com um caderno de capa azul-escuro, folheando as páginas amareladas.
A porta da casa estava aberta.  Procurando pelo tio, o vizinho encontrou seu corpo já frio na cama. O rosto daquele bom homem dilacerado. E um martelo ensanguentado jogado ao lado no chão.
O que ninguém observou é que nos fundos da casa havia uma escada levando ao sótão. E no sótão, uma caixa cheia de cadernos havia sido virada e remexida.
A polícia trabalhou inicialmente com a hipótese de um assalto seguido de morte.
Mas logo as investigações levaram a outra direção. A criança passou a ser a principal suspeita. O exame das digitais no cabo do martelo confirmou a tese.
Como Júnior apresentava comportamento bastante estranho, alienado de tudo o que acontecia ao seu redor, sem falar, exames psiquiátricos foram feitos. Revelou-se que Júnior era um caso precoce de esquizofrenia.
Júnior foi então internado na mesma instituição de sua avó, onde, por coincidência, passou a morar no mesmo quarto onde ela vivera.
Os cadernos foram junto com ele. Pois a tentativa de tirar os cadernos de sua proximidade tornava-o extremamente violento.
Ana Clara passou a cuidar de Júnior. Dava carinho e atenção a ele como a um filho. Com sua ajuda, Júnior passou a tomar os remédios regularmente. Parou de ter as crises. Passou a ser uma criança tranquila e alegre, dentro do possível em um ambiente como aquele. O doutor Ângelo acreditava em sua completa recuperação.
Mas ainda assim não se separava dos cadernos. E eles permaneceram em seu quarto no hospital.
Quando Júnior completou doze anos, passou a trabalhar com Ana. Esse fora o maior erro da carreira daquela enfermeira. Ela nunca se perdoaria por isso. Sabia que aquilo não daria certo, mas era uma ordem do doutor Ângelo, o que poderia fazer? Só se dera conta do sumiço de um dos bisturis quando já era tarde demais.
Na manhã do dia anterior, fazia a inspeção de rotina, quando ouviu gritos vindos do quarto de Júnior. Gritou com horror ao encontrar Júnior perfurando o peito com o bisturi da enfermaria, caído no chão banhado no próprio sangue, pedindo clemência a seus pais no inferno.
Ana Clara nada pôde fazer. Correu com Júnior para a ala cirúrgica do hospital, mas as perfurações atingiram órgãos vitais de seu corpo. O dinheiro herdado dos pais foi o suficiente para as despesas do enterro.
Ana foi a única pessoa presente no velório, naquela manhã.
A enfermeira acordou de seus pensamentos: havia trabalho a fazer. Abriu o armário delicadamente. Lá estavam os malditos cadernos, numerados na aba, organizados um ao lado do outro, em ordem crescente.
Pediu à servente que trouxesse uma caixa de papelão do almoxarifado, para colocá-los dentro. Enquanto a servente saía, Ana Clara começou a retirá-los do móvel, formando uma pequena pilha no chão.
Um dos cadernos escapuliu de suas mãos, abrindo-se ao meio ao cair.
Ana Clara recolheu-o no chão. Folheou-o com calma.
Não havia nada escrito em suas páginas.
Meditou, angustiada:
“O que o Júnior tanto via aqui, nesses cadernos em branco?”
 Por fim a faxineira chegou com uma caixa de papelão. Ana Clara colocou todos os cadernos lá dentro.
Pensou em deixa-los fora da ordem, mas algo a impeliu a coloca-los na ordem crescente de sempre. Por fim, selou a caixa com fita adesiva.
O Doutor Ângelo solicitara a ela que enviasse os cadernos a uma escola.
Mas Ana Clara refletiu um pouco. E escreveu com um pincel atômico no lado da caixa:  
DOAÇÃO PARA O ORFANATO PIO XII
E naquela noite, no único orfanato da cidade, uma pequena menina de cabelos loiros acordou na madrugada.
Seu nome era Maria.
Tivera um pesadelo com uma velha senhora, em um quarto com janelas cheias de grades. E não conseguiu voltar a dormir.

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