Pirei no Conto

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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Conto de Terror: "A Herança" - 1a parte




Augusto crescera sozinho, até a vida adulta, no Orfanato Pio XII, o único que existia na cidade. Os cuidadores lhe diziam que a mãe ficara muito doente, e falecera.
Quando adolescente, Augusto pôde por fim saber a verdade: sua mãe matara o pai de Augusto, após um surto psicótico, alguns dias depois de seu nascimento. E fora internada no hospital psiquiátrico da cidade. Nunca teve coragem de visitar a mãe.
Quando cresceu, foi obrigado a sair do orfanato, e conseguiu um emprego de office-boy. Na firma, conheceu sua futura esposa, Nayara. Ela vinha de uma família tradicional, que se opunha ao namoro.
Mas Augusto conseguiu um emprego mais estável na firma, começando como vendedor, e após alguns anos de muito esforço chegou a gerente da filial local.
Quando a família de Nayara percebeu a capacidade e tenacidade daquele rapaz, sentiu-se mais segura, e por fim Nayara e Augusto puderam se casar.
O nascimento do filho do casal, Júnior, coroou uma relação de amizade e cumplicidade, que nada poderia romper.
Nayara também começou a trabalhar, e juntos, conseguiram trocar a pequena casa em que moravam de aluguel por um belo sobrado em um distrito próximo. Por fim, após tanta batalha, Augusto usufruía de uma vida confortável ao lado da esposa, junto com o filho, que acabara de completar sete anos.
Porém, há poucos dias, soube da morte de sua mãe por causas naturais. Uma enfermeira ligou para a casa de Augusto, informando o falecimento, e relatando a existência de uma caixa. Dentro dela restavam os últimos pertences daquela mulher.
Nayara, a esposa de Augusto, incentivou-o a ir ao hospital. Era uma forma de encerrar aquele capítulo da vida dele. Eram agora felizes, e ela não queria nada que atrapalhasse o futuro de seu marido.
No dia marcado, Augusto não foi ao trabalho. Deixou a maleta 007 que levava todos os dias ao serviço na escrivaninha do escritório. E tomando coragem, deu um beijo na esposa na porta de casa, e entrou no carro com destino ao sanatório municipal.
Quando viu o hospital, não pôde deixar de pensar melancólico que aquele fora o último lar de sua mãe, onde passou os últimos anos de vida.
Encontrou a enfermeira que o havia contatado, e ela o acompanhou até um depósito nos fundos do hospital.
Entre vários equipamentos hospitalares já obsoletos, a enfermeira apontou para uma caixa.
Era uma caixa grande de papelão. Augusto carregou-a dali com alguma dificuldade. Perguntou à enfermeira se não havia alguma sala vazia, onde pudesse olhar com calma o conteúdo.
Ela assentiu com a cabeça, e solicitou que ele a seguisse por um corredor. Ao longe, Augusto podia ouvir um dos pacientes gritando, as palavras ininteligíveis. A enfermeira apontou uma porta entreaberta. Na sala havia uma mesa e duas cadeiras. Uma grade de ferro envolvia a janela.
- Bom dia, senhor Augusto. – despediu-se a enfermeira.
Ele colocou aquele peso sobre a mesa, e sentou-se. Rompeu a fita adesiva com a chave do carro, e abriu a caixa. Viu com surpresa que no interior somente havia diversos pequenos cadernos. Estavam todos numerados na aba, de 1 a 34, organizados em ordem crescente.
Retirou o caderno com o número 1. A capa mudara de cor, de um azul escuro para lilás, com os cantos se rasgando e as páginas amareladas e empoeiradas. Augusto abriu na primeira página, e percebeu tratar-se de uma espécie de diário.

“7 de abril de 1980
Meu filho acaba de nascer.
Dizem que todos os recém-nascidos são iguais, mas ele se parece com o pai, o que me angustia mais ainda.
 Sinto que meu bebê e eu somos dois estranhos que acabaram de se conhecer, e me sinto culpada por me sentir assim. Todos dizem que é o momento mais bonito na vida de uma mulher, mas até agora só senti dor.”

Augusto parou a leitura. Era o primeiro contato em sua vida com a mulher que fora sua mãe. Nunca soube ao certo o dia em que nascera. Vontade de fumar. Foi até a janela respirar um pouco. Os passos faziam eco dentro da sala. A janela com grades dava para um pátio interno, onde alguns pacientes perambulavam, tomando o banho de sol.
Augusto sentou-se novamente, e virou a página. Sem dúvida era a mesma pessoa quem tinha escrito ali. Mas as letras encontravam-se empilhadas uma em cima da outra, quase não sobrando espaço entre as palavras. A caneta havia sido pressionada fortemente, criando sulcos no papel, profundos o suficiente para se sentir com o tato. Augusto leu com dificuldade o texto.

“8 de abril de 1980
Ontem à noite um anjo veio me visitar. Seu rosto e sua voz não eram de homem ou de mulher.”

A fronte de Augusto se fechou, seus olhos se apertaram.

“Sua auréola era prateada, assim como seus olhos e sua pele. Suas asas eram amarelas e macias. Não parecia branco, negro ou asiático, mas uma mistura de todas as raças, e ao mesmo tempo, de nenhuma delas. Sua luz tingia todo o quarto de muita calma, parei de sentir dores, frio ou calor. Senti no meu coração uma ternura como nunca antes.”

Apesar do tratamento psiquiátrico, diziam que sua mãe era calma e dócil, mesmo depois da internação. Seu comportamento fazia as pessoas duvidarem que pudesse haver cometido um ato tão cruel na própria família.  Augusto lembrava-se de um vulto, de uma voz terna, de um perfume doce. Mas era só.

“O anjo me disse que seu nome era Ismael. Que vinha em nome de Nossa Senhora de Fátima. E me disse para começar a escrever.”

Augusto virou a página, apenas para ler horrorizado:

“Meu filho, sei que você neste momento está começando a ler o meu diário. Ele é a sua própria história. Um anjo me concedeu o milagre de revelar todo o seu destino deste momento em diante.
Você agora, adulto, está sentado no quarto onde viverei quase toda a minha vida, no hospital psiquiátrico onde serei internada, e de onde nunca sairei.”

Um choque percorreu seu corpo. Uma cortina tênue desceu sobre seus olhos. Parecia imerso em um sonho. Não sentia mais o corpo. Ou antes, sentia o corpo, como quem o observa de fora. A sensação durou um milésimo de segundo.
Augusto recobrou sua razão: por certo era a loucura de sua mãe que a fizera escrever o que acabara de ler.
Fechou o caderno. Recolocou-o no lugar original, e fechou a caixa. Caminhou novamente pelo corredor estreito, e por fim até a saída do hospital. Respirou aliviado o ar puro do lado de fora. Tirou um maço de cigarros do bolso. Acendeu um deles, e tragou demoradamente.
Enquanto conduzia o carro de volta para casa, Augusto fumava seu cigarro, batendo a cinza pela janela. O sol quase se escondia atrás de uma enorme nuvem negra de chuva no fim da estrada. Faltavam ainda uns poucos quilômetros, e alguns pingos de chuva começaram a cair.
Augusto jogou a bituca pela janela, ao mesmo tempo em que pensava na esposa. Provavelmente ela sentiria o cheiro da fumaça em suas roupas e no carro, lamentando mais uma vez por ele ter fumado.

*                                                *                                                              *

Lembremos que, rotineiramente, todos os dias Augusto levava uma maleta 007 para o trabalho. Mas naquele dia pedira dispensa para ir ao hospital e identificar os objetos de sua mãe. E a maleta havia ficado em casa, no escritório. Ela sempre permanecia fechada, e só Augusto possuía o segredo.
Como era uma maleta de trabalho, nunca chamara a atenção de Nayara, muito menos a ela importara que só Augusto tivesse a senha para abrir o fecho. Não possuíam segredos um para o outro. E Nayara sabia reconhecer todos os sentimentos de Augusto. Era alguém transparente para ela. Pelo menos ela assim pensava.
Até este dia.
Nayara estava no banho.
A maleta, sozinha no escritório, fez um clique, e abriu.
Enquanto se enxugava, Nayara ouviu o telefone do escritório tocando. Enrolou-se na toalha rapidamente, e correu para o escritório para atender. Devia ser Augusto ligando.
- Alô? – respondeu ela. Mas a linha caiu.
Nayara sentou-se um pouco na poltrona do marido, em frente à escrivaninha. Do lado de fora da janela, caíam alguns pingos de chuva. Ao longe, no horizonte, aproximava-se uma nuvem pesada e escura, um prenúncio de tempestade.
À frente da janela, sobre a escrivaninha, observou a maleta. O fecho aberto.
- Mãe, posso jogar videogame? – era o Júnior, no corredor, na porta do escritório. Nayara olhou para ele com doçura. Mas devia ser firme.
- Depois do dever de casa, meu filho.
- Mas mãe...
- Nada de “mas”. Agora. Feche a porta do seu quarto. Não quero ouvir um pio, ok?
O filho se afastou. E os olhos de Nayara voltaram a se fixar naquela maleta.
Normalmente não mexeria nas coisas do marido sem o consentimento dele. Mas algo lhe dizia: não há nada demais olhar ali dentro. Afinal, não havia segredos entre ela e Augusto.


(Continua na 2a parte do Conto "A Herança")

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