Conceição Targino é uma maranhense, poetisa inspirada, de São Luís. Mora em Brasília há 30 anos, onde nasceram, por meio de sua poesia, seus heterônimos: Lindha Torres, em que trabalha o erotismo, Anástácia, mais lírica, e recentemente, Alice, ainda em descoberta. Participa dos encontros do Lounge Poético no Balaio Café todas as terças-feiras, e participou do calendário "Poesia Nua", projeto colaborativo para edição de um livro de poesias com vários autores de Brasília.
Pirei no Conto – Quando e como você começou a escrever poemas?
Conceição Targino - Ainda criança, quando eu tinha uns oito anos, escrevi uns poemas... porém, vivi algumas situações familiares que me deixaram insegura, e me fizeram deixar os poemas de lado... Na adolescência retomei, e escrevia mais contos.
Pirei no Conto – Qual é a principal inspiração para o seu trabalho?
Conceição Targino - Em geral, são as inquietações, de todas as maneiras.
Pirei no Conto - Como surgiram seus heterônimos? Quais os temas preferidos de cada um deles?
Conceição Targino - Lindha Torres segue o erotismo e tudo que envolve essa temática bem intensa. Dona de si. Sinto-me confortável! (risos)
Anastácia trabalha o lirismo de maneira exaltada...
Alice é o mais novo heterônimo! (risos) É inquieta e feliz, ainda em descoberta...
Pirei no Conto – Você tem algum método para trabalhar seus poemas?
Conceição Targino - Varia muito a forma de trabalho, não consigo me definir. Sou geminiana e meu lado inquieto e expansivo faz as emoções ficarem confusas
Pirei no Conto – Quais seus autores favoritos e/ou pelos quais você se sente influenciada?
Conceição Targino - Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, Hilda Hilst, dentre outros. Sou eclética.
A seguir, um pouquinho do trabalho de Conceição Targino, através de seu heterônimo, Lindha Torres:
Efêmera
Desnude-me
Quero transitar por todos os meus espaços
Preencher meus vazios
penetrar minha alma ingênua e profana
A partir da minha insensatez
e quando lá eu chegar
abrace-me
lambuze-me
lave-me com óleos da paixão
Até que eu me recomece
e me reconheça
acreditando que posso ir além de mim mesma
atrevida e ousada
sem pressa e sem pudor
como cada fase da lua
descobrir a mulher efêmera
que sou
Lindha Torres
Pirei no Conto
quinta-feira, 26 de março de 2015
terça-feira, 24 de março de 2015
A Bruxa da Vila Amaury
Dizem
que no começo de Brasília, na época da construção, havia uma senhora que morava
em um barraco na Vila Amaury.
Naquela
época, os candangos que construíam Brasília moravam em alojamentos. Cada
conjunto destes alojamentos, de até sessenta mil homens, era chamado de vila. E cada construtora fazia a sua, onde dormiam seus empregados. Em geral, o nome de cada vila era dado conforme o
nome da própria construtora. Porém no caso da Vila da Amaury, saiu do nome do engenheiro responsável.
Acontece
que essa mulher já era estranha em um ambiente só de homens. Morava só, e ninguém
sabia de onde vinha. Pelo sotaque, difícil de adivinhar... Seria de Minas,
Pernambuco, ou Paraná? Ninguém sabia precisar.
À
boca pequena diziam: “deve ser mulher da vida”. Mas uma senhora matrona como
aquela, os cabelos bagunçados, e faltando um dente da frente, por maior que
fosse a necessidade do pessoal, na Cidade Livre havia oferta melhor que
aquela...
Mas,
de fato, era em outras artes que ela se revelava. Da mandinga, adivinhação, e
quem sabe até um olho gordo... Do barraco vinha um cheiro estranho, de incenso
e mau agouro.
A
fama se espalhou de que as mandingas traziam sorte e um destino melhor. Quem
não quer mudar seu destino na terra abençoada por Dom Bosco, ainda que se aproveitando
de artes que o bom santo não aprovaria?...
E
de quando em quando, apesar do medo na espinha, algum caboclo ia lá se
arriscar... o soldo dos trabalhadores só saía no sábado e
ela gostava de ser paga à vista. E era caro!
Porém
um dia, um destes caboclos, de nome Deomar da Silva, resolveu pela janela
pular, depois de tomar um chá, e pegar sua garrafada.
E
agora, ele fugido no meio daquele povo, sem pagar? Só na Vila Amaury tinha
gente de fartar... quem diria na cidade toda, ainda em construção? Onde aquele
sacripanta poderia estar?
E
a velha teve uma ideia. Pegou um pedaço de pau, e nele derramou veneno de sapo,
baba de quiabo e sal.
Naquela
época, todo mundo já sabia, a Vila Amaury ficava onde seria o leito do Lago
Paranoá. Assim que fechassem a barragem, todos deveriam sair de suas casas e
partir para outro lugar.
A
velha misteriosamente botou o pau, ensebado naquela mistura toda, de pé em
frente ao seu barraco. E se pôs a esperar.
Fecharam
a barragem, a água começou a subir. Candango por candango, quando a água no seu
alojamento chegava, sabia que era hora de se ir.
Menos
a velha: quando a água ali chegou, nem saiu do seu barraco. Da porta olhou para
o pau e disse:
-
Essa água daqui não passa!
Na vila, a história espalhou-se como rastilho
de pólvora. Que uma velha senhora parou a água.
Vieram
os engenheiros. Não acreditavam. Foram ter com o Israel Pinheiro (1). Que muito
menos acreditou. Foi olhar com os próprios olhos que a terra há de comer. E
teve que dar o braço a torcer.
A
velha, do barraco só olhava. Seus olhos brilhavam e diziam – vitória!
Os
candangos diziam que era feitiçaria da velha. Mas os engenheiros pensavam em
cálculos, geologia. Feitiçaria? Nada disso. Explicaria a ciência.
Tinha
um engenheiro no Rio, famoso por criticar o Presidente. Que na cidade criada
por JK, aquele lago não encheria. O terreno era poroso, sugaria aquela água.
Falaram
com a assessoria da Presidência, sem JK saber. Ele ficaria furioso se o lago
não enchesse. E trouxeram o fulano do Rio secretamente.
Esse
engenheiro pegou amostras do terreno, louco para provar sua teoria. Examinou,
olhou... e ficou encucado. Pois chegou a uma conclusão: era ele quem estava
errado!
O
terreno era argiloso, próprio para sustentar um lago. A água deveria encher, e
muito!
E
então? Tentaram todas as explicações. Mas nenhuma servia. Não havia
contradição. O lago encheria de fato, ou deveriam queimar os seus diplomas.
No
desespero, pediram para alguém, protegido pela noite, ir aquele pau tirar do
lugar. Mas quando a pessoa estava pronta para o pau furtar, a velha estava na
porta, os olhos bem abertos. E só fez um sinal com o dedo. Nã-nã-nã-nã-nã-nã.
Não senhor.
A
pessoa correu de medo. Chamaram de covarde, com medo de uma velha? Ah, é? Então
vai outro no meu lugar. Todo mundo se olhou. Ninguém ia ter coragem de ir lá.
Mexer naquele pau, com a velha vigiando, nem pensar.
Veio
uma comitiva conversar com a velha. Não custava dialogar. E a velha revelou seu
preço: não queria mais dinheiro. Mas a cabeça de Deomar. De preferência, em uma
bandeja de prata, como São João Batista.
Por
essa eles não esperavam. Dinheiro não era problema. Mas matar um homem é uma
história bem diferente.
Juscelino
veio Brasília visitar. E a falta de um lago é algo que não dá para disfarçar.
Israel
Pinheiro e Niemeyer tentaram o Presidente distrair. Levaram-no no Congresso, na
Catedral... Só que era o lago que Juscelino queria conferir.
Toca
para o lago... que lago? Juscelino não podia acreditar... tiveram que contar a
história da velha da Vila Amaury.
Juscelino
se virou para eles... Ai, é agora que o presidente bossa-nova perde a
compostura. Mas o Presidente só deu um sorriso.
Afinal,
quem lidava com o bruxo do Lacerda (2) diariamente lá no Rio, não ia dar conta
daquela senhora?
“Mineiro
é mineiro. Deixem comigo. Só encontrem esse tal de Deomar, que preciso que
conversemos os três.”
Acharam
o tal Deomar. Que foi ter com o Presidente tremendo. Já sabia o preço da velha.
E
foi ele e a velha ter uma reunião a portas fechadas com o Presidente da
República. No barraco da velha.
A
reunião até que foi curta. Não mais que meia hora. Deomar saiu primeiro,
vivinho da silva, e aliviado.
Depois
saiu a velha satisfeita ao lado do Presidente. Era como se fossem velhos
amigos. Ela mesma pegou o pau, arrancou e jogou fora. E a água voltou a subir
na mesma hora.
Ninguém
soube qual foi o acordo. E o caso foi abafado, para não chegar nos jornais.
Meses
depois, Brasília foi inaugurada, sem nenhum outro problema.
Mas
a velha virou lenda na nova capital. Ninguém sabia dizer se ela de verdade
existia. Mesmo assim, criaram sobre ela várias
teorias. Dizem até que JK não cumpriu o combinado. E que foi por isso que,
tempos depois, o Jânio renunciou.
Mas
na verdade, à velha foi oferecida uma
casinha no Cruzeiro. Naquela época não custava tanto, hoje vale um bom
dinheiro.
Além,
isso quase ninguém sabe, à velha foi concedida uma grande honra, parte do preço
que foi pago. A de aconselhar todos os Presidentes da República desde então.
Afinal,
quem entendia do lago era ela, e não os engenheiros. Pelo sim, pelo não, não
custava ouvir a velha senhora. JK, bem mineiro, juntou o útil e o agradável.
Mas
não se preocupem, a velha é democrática. Foi por causa dela que o Geisel
resolveu fazer a abertura. E o Figueiredo era seu queridinho na época da
Anistia. Mas saiu de lá aos pontapés, quando o Congresso reprovou as Diretas
Já.
O
Collor nem passou da porta. E deu no que deu.
Por
isso, quem for bom observador, vai ver, de vez em quando, um carro oficial
saindo de madrugada, lá do Palácio da Alvorada.
Afinal,
a Dilma quer sair da crise.
Mas
a velha está pensando em se mudar. Um certo mineiro não para de lá passar. Já
está incomodando. Apesar de ela sempre lembrar que eleição ela não pode influenciar.
É decisão soberana do povo.
E
para quem quer um golpe, já adiantou: sem essa, meu colega . Eleição, só em
2018.
Notas do
Autor:
(1) Israel Pinheiro (Caeté,
04/01/1896— Caeté, 06/07/1973) era político em Minas Gerais. Foi presidente da
Novacap, empresa pública responsável pela construção de Brasília. Foi também o
primeiro administrador da cidade.
(2) Carlos
Lacerda (Carlos Frederico Werneck de
Lacerda) (Rio de Janeiro, 30/04/1914 – Rio de Janeiro, 21/05/1977) era jornalista,
proprietário do jornal Tribuna da Imprensa, e político. Tramou um golpe contra
Juscelino em 1955 e era seu principal adversário. Em 1960 tornou-se governador
do Estado da Guanabara.
Críticas, dúvidas, sugestões? Não pire... é só escrever pra gente! felipesilvaberlim@gmail.com
segunda-feira, 16 de março de 2015
A Isca da Vaidade
Um dia Sandra estava experimentando um vestido no
ateliê de um famoso costureiro.
Estava um pouco nervosa. Aquele poodle do estilista
não parava de latir...
Seu belo rosto se contorcia de desgosto.
Era modelo. Muito bonita, igual a outras. E desconhecida, igual à
maioria.
Mas seu destino estava para mudar.
Enquanto o estilista cortava o vestido no corpo de
Sandra, com uma tesoura grande e amolada...
De repente, Sandra deu um grito!
Levantou a mão, estava sangrando. E faltava o dedo do
meio. Fora decepado pela tesoura!
Procuraram o dedo, afoitos. Estava na boca daquele
maldito poodle.
Correram atrás dele, mas ele foi mais rápido: pulou
pela janela, e fugiu rua afora!
Sandra foi para o hospital. Já o cachorrinho, só
acharam no dia seguinte. Estava com a boca cheia de terra e olhar satisfeito.
Com certeza enterrara o dedo, como se fosse um mero ossinho. O dedo estava
definitivamente perdido.
O estilista deu a carreira de Sandra por encerrada. E
não a queria mais no desfile. Sandra ficou apavorada.
Mas o desespero é o pai das melhores ideias.
Sandra sussurrou algo para o estilista, enquanto
mostrava o toco do dedo com um curativo.
O estilista pensou um pouco, e meneou com a cabeça com
um “sim”.
No dia do desfile, Sandra não apareceu entre as
modelos. Estava reservada para o grande final.
E quando entrou, fez uma careta mostrando a língua. Botou
uma mão na cintura, e fez um gesto obsceno com a outra. Mostrando o dedo do
meio decepado...
Muitas fotos, o que era aquilo? Ela cortara o dedo
para o desfile?
No dia seguinte, nos jornais e nas fofocas em geral, a
grande dúvida – arte, exibicionismo, atitude ou loucura? Da modelo que cortara
um dedo, antes de entrar na passarela...
Fizera aquilo para passar uma mensagem sobre a nova
coleção?
O estilista apressou-se em dizer que não. Fora ideia
dela. E ele não tinha nada a ver com isso.
Mas aquela modelo, até então desconhecida, foi chamada
para dar entrevista na TV. Todos queriam saber: o que é que se passava? Ela
queria aparecer, ou era autoflagelação?
E Sandra explicou, tristemente, que sofrera um
acidente. E por isso queriam que não desfilasse mais... Mas ela era forte,
aquilo não seria um obstáculo. Afinal, nos dias de hoje, o importante era ter...
atitude.
E corajosa, fez o mesmo gesto obsceno com as mãos,
apontando para a câmera. Fazia aquela careta de pouco caso, que as modelos
sabem fazer. No meio da mão, o dedo cortado pela metade.
Sucesso tremendo. Todos se comoveram com a história de
superação.
E convites surgiram. Para a Ilha de Caras. Para festas
com cachê pago – somente uma horinha de presença, e nada mais. Para representar
linhas de joias, maquiagens, grifes e afins.
Por fim, Sandra resolveu se casar. Tudo muito
romântico. E bem caro. Casou-se patrocinada por uma marca de perfumes.
Em vez de alianças, seu noivo resolveu cortar um dedo,
como mostra de carinho.
Muitas fotos. E polêmica. Alguns ficaram contra,
outros a favor. E ainda alguns outros exageraram, para demonstrar a Sandra o
seu amor.
Tatuagens, piercings... por que não cortar um dedo?
E isso virou moda.
Na TV, os psicólogos alertavam: nada de fazer em casa.
Nos tatoos, agora nisso também especializados, instrumentos esterilizados. E
para os pais, o aviso. O importante era o diálogo.
Mas alguns começaram a exagerar, virou uma obsessão.
Muitos cortavam mais de um dedo nas mãos. Outros, até os dedos dos pés
cortavam.
Surgiram clínicas especiais para esses casos. Na hora
do almoço, colheres de plástico. Instrumentos cortantes ali eram proibidos. Se
bem que até quebrando as colheres, e afiando a ponta, eles e elas tentavam
outro dedo cortar...
Mas tudo isso, depois de meses, começou a cair no
esquecimento... E o nome de Sandra passou a ser só uma lembrança, uma modinha
bem estranha, para nunca mais voltar.
Mas Sandra, percebendo o movimento, preparou o seu
retorno.
E em um desfile em homenagem a Van Gogh, com os
vestidos todos cheios de girassóis, surgiu Sandra no final.
Ela virou um dos lados do rosto para as câmeras. Uma surpresa.
Como Van Gogh, Sandra cortara uma das orelhas.
E a plateia aplaudiu, em celebração. Era a glória.
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