Pirei no Conto

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segunda-feira, 2 de março de 2015

A Carícia do Vento sobre as Águas



      



             De pé, com a Ermida Dom Bosco às suas costas, três gerações fitavam as águas calmas do Paranoá. Estavam em silêncio.
                À direita, a neta, Helena. À esquerda, Júlia, a única filha. E no centro, o pai, Joaquim.
                Joaquim chamava a filha Júlia de Brasinha. Diziam que era porque tinha um gênio esquentado. Mas de verdade mesmo, só o pai sabia. E não dizia.
                Joaquim, um pioneiro. Candango, como se dizia antigamente. Um dos últimos.
                Ele tinha acabado de visitar sua filha mais nova na Asa Sul. Já estava com quase 90 anos, e foi apresentado ao primeiro bisneto.
                Depois da visita, pediu para ir à Ermida. Era um desvio grande do caminho, moravam na Ceilândia. Helena, que dirigia, reclamou. Mas Júlia convenceu a filha. Estavam com bastante tempo, era domingo, o que custava fazer a vontade do avô? E porque não passear um pouco? Quase nunca iam ao Plano Piloto. E então atravessaram a ponte JK.
                Da Ermida, podiam ver, depois do lago, o Congresso Nacional, e o mastro com a bandeira. Mais ao lado, o Banco Central, e a sede da Caixa Econômica. Os prédios pequeninos. A cidade parecia frágil como uma maquete.
                - Lindo, não é, vovô?
                Mas Joaquim nada respondeu. Só admirava o entardecer, que emoldurava a cidade.
                Viera a Brasília com dezenove anos, de Piancó, na Paraíba, no início de 59. A cidade então era um imenso canteiro de obras. A terra tingia de vermelho as roupas e os corpos dos trabalhadores. Conseguiu emprego na Pacheco Fernandes. E se juntou à massa dos candangos.
                Os homens começavam as obras de madrugada, e só terminavam tarde da noite. Mal encostava a cabeça no travesseiro, no beliche onde dormia, e os alto-falantes já chamavam para o trabalho que mais uma vez começava.
                Nos domingos, a vila ganhava vida. O salário saía no sábado, e finalmente podiam comprar alguns mantimentos.
Alguns iam perto do Hotel Nacional ter com as putas. Elas levavam uma toalha nas costas, e uma bolsa nos ombros. Se alguém se dispusesse a uma aventura, era uma horinha entre as árvores do cerrado. As putas botavam a toalha no chão, e ali eles se deitavam. Depois elas tiravam uma toalhinha menor da bolsa para se limpar.
                No fim do dia, os trabalhadores se recolhiam cedo, para o trabalho no dia seguinte. E antes de dormir, no interior dos quartos, fumavam um cigarro e conversavam para matar a saudade de casa antes de dormir.
                Foi em uma destas ocasiões que Joaquim conheceu Amaro. Ele viera do interior da Bahia. A esposa insistiu em vir com ele. Coisa rara. Normalmente os caboclos vinham do Nordeste e deixavam famílias inteiras no estado de origem, à espera da inauguração da capital. Mas Josefina tinha insistido em vir junto. Não queria perder a oportunidade de conhecer algo além dos limites da cidade pequena onde viviam.
                Por sorte, ela conseguiu trabalho na Pacheco, ajudando na cozinha do bandejão. Enquanto Amaro dormia com os outros, Josefina ficava com as poucas mulheres existentes em outro alojamento.
                - Eu quero fazer algum dinheiro e depois sair dessa terra. Isso aqui não presta.
                E Amaro saía a desfiar para Joaquim suas reclamações. Esperava outra coisa da cidade “onde jorraria o leite e o mel” - a profecia de Dom Bosco já se encontrava na boca de todos, alimentando a esperança de tempos melhores. Não para Amaro. Sentia cansaço demais: começavam cedo a trabalhar, mas não havia hora para acabar. E a comida vinha cada vez pior.
                Joaquim passou a defender Brasília: era uma oportunidade, onde todos seriam iguais. Amaro duvidava. Não era o que via no dia-a-dia.
                E o tempo passou a provar aquilo que Amaro dizia. JK tinha pressa. A cidade precisava ficar pronta em pouco mais de um ano. As jornadas, que já eram extensas, aumentaram cada vez mais. Até o momento em que começaram a trabalhar vinte e quatro horas seguidas.
                Os candangos  costumavam tomar banho e se perfumar para ir à Cidade Livre, como era conhecido o Núcleo Bandeirante, para ir farrear. Por isso, fecharam as torneiras. Não havia mais água na Vila Pacheco.
Com as jornadas duplas, a falta de água e a comida ruim, outros, como Amaro, começaram a reclamar. E outros ainda, como Joaquim, tentavam ficar quietos, precisavam do emprego. Mas o rancor daquela situação começava a se acumular de forma explosiva.
                Dia 07 de fevereiro era sábado de carnaval. E nada de receberem o soldo. No dia seguinte,  no bandejão, quando Amaro experimentou,  a comida estava completamente azeda. Estragada.
                Amaro se levantou. Muitos outros com ele. Foram reclamar da comida. Josefina se assustou com aquilo, tirou o avental e saiu dali. Conhecia o temperamento do marido. O chefe da cozinha foi conversar. Disse que a comida estava ótima, e que se começassem a se amotinar, ia chamar a GEB.
                A GEB era a Guarda Especial de Brasília, que mantinha a ordem na cidade ainda em construção. Amaro e os outros não se acovardaram. A multidão se aglomerava. Com o sangue quente nas veias, irritados com aquela resposta atravessada, entraram pulando na cozinha, jogando panelas e bandejas no chão.
                O chefe conseguiu escapar, e cumpriu a promessa de chamar a GEB.
                Veio a GEB, já com o cassetete na mão. Soltaram a mão nos caboclos. Tá-tá-tá-tá!!! Mas os candangos eram muitos, e a situação começou a se inverter. Desarmaram um dos guardas, que tentou se afastar do aglomerado para não apanhar. Os outros guardas subiram nos carros correndo, para se afastarem do povo enfurecido.
                Amaro saiu ferido, mas feliz: tinham dado uma lição naqueles cabras. Quem sabe agora respeitavam mais aqueles que faziam a História com as próprias mãos. Aqueles que tinham vindo de longe, atendendo ao chamado do Presidente, mas não para serem tratados dessa forma.
                Mas naquela noite, Joaquim acordou com a porta do seu quarto sendo aberta com um forte chute. Sequer pôde levantar da cama. Ouviu um som de tiros, e uma dor lancinante na perna. Apesar disso, tentou manter-se em silêncio.
                - Acabamos por aqui, vamos para o próximo – disse alguém na escuridão.
                Ouviu o som de passos se afastando. Tomou coragem para descer do beliche.
                Com muito custo conseguiu chegar à parede, e achou o interruptor. Quando acendeu, viu a pior cena de sua vida.
                Os companheiros do quarto, ainda em suas camas. Metralhados. Cobertos de sangue. Mortos.
                Entre eles estava Amaro.
                Correu o quanto podia para fora dali. Repentinamente, as luzes da rua foram desligadas. Enquanto isso, continuava a ouvir o som de tiros por todos os lados, e gritos de desespero.
                Escondeu-se no matagal perto. E esperou até o amanhecer. E na luz parca da aurora, ele viu os caminhões cheios de corpos que se afastavam.
                Conseguiu chegar até a enfermaria, onde mais outros se encontravam espalhados no chão, sendo cuidados pelos poucos que podiam prestar socorro. Foi por fim levado ao hospital.
                De volta à Vila Pacheco, procurou por Josefina no alojamento das moças. Ela o abraçou tremendo. Perguntou onde estava Amaro.
                Quando Joaquim relatou o que tinha visto, Josefina se ajoelhou no chão de tanta dor.
                A notícia do massacre se espalhou. As autoridades tentaram abafar. A Associação dos Trabalhadores da Construção de Brasília conseguiu burlar a repressão, e mandaram um telegrama de Goiânia para a Presidência da República.
                Diversos jornais, de todo o país, relatavam o desastre na Capital da Esperança. Dois repórteres de Belo Horizonte vieram para tentar discernir a verdade dos acontecimentos. Sem grande sucesso – os relatos se contradiziam, ninguém conseguia precisar exatamente o ocorrido.
                Uma única coisa era certa: a GEB estava por trás de tudo aquilo. Uma matança para vingar a humilhação que passaram no domingo.
                Os engenheiros responsáveis pela construção se esquivavam. Até mesmo a Presidência negava a chegada de qualquer telegrama.
                E no meio de todo esse alvoroço, Joaquim não teve mais coragem de continuar na Vila Pacheco. Conseguiu trabalho na Vila Amaury, responsável pela construção do Congresso e dos Ministérios, e se mudou.
                Na Vila Amaury, o clima era de maior camaradagem. No dia de folga, nos domingos, as pessoas escolhiam as músicas que tocavam nos alto-falantes. E Joaquim, com o trabalho pesado, queria esquecer tudo que havia acontecido.
                No dia de descanso, Joaquim foi com alguns colegas ter com as prostitutas no Hotel Nacional. E quando chegou, reconheceu uma delas, a toalha nas costas. Era Josefina.
                Aproximou-se, e brigou com ela. O que estava fazendo no meio daquelas desavergonhadas? Mas Josefina só chorou, disse que ainda não tinha feito nada. Mandaram-na embora da Pacheco Fernandes, não tinha nem o que comer, o desespero a tinha levado ali. Não conseguira ainda se entregar a ninguém, não tinha coragem.
                E então ele a levou para a Vila Amaury. Ela conseguiu emprego em uma vendinha, que um conhecido de Joaquim, o Nabuco, tinha aberto recentemente.
                Depois de alguns meses, Josefina começou a namorar Joaquim. Não tinha mais ninguém ali, e a carência apertava seu coração, junto com a saudade e a revolta por Amaro. Quando a tristeza a atingia, era reconfortada imediatamente nos braços de Joaquim. E por fim se entregou àquele amor.
                Conseguiram juntos alugar um pequeno quarto. E enquanto Joaquim trabalhava nas obras, Josefina cuidava da vendinha. Encontravam-se somente à noite.
                A Vila Amaury ficava onde seria mais tarde o Lago do Paranoá. Na parte mais estreita do vale, uma barragem era construída. Ficaria pronta em setembro.
                Notícias vinham do Rio de Janeiro de que o lago jamais encheria, porque o terreno da cidade era muito poroso. Mesmo assim, a dedicação dos candangos era cada vez maior.
                O Congresso, onde Joaquim agora trabalhava, era apenas um esqueleto, as ferramentas para fixar as vigas de aço não existiam. Deveriam ser importadas. Mas não havia tempo para isso. Por fim encontraram uma solução. Os pinos eram jogados lá para o alto, vermelhos de tão quentes, e as mãos hábeis dos candangos pegavam-nas com luvas e introduziam nos buracos. O metal fervendo desenhando estrelas cadentes no céu escuro e silencioso da noite do Planalto Central.
                Na Vila Amaury, estavam todos avisados – a vila era provisória. Assim que a barragem fosse concluída, deveria ser abandonada.
                Mas alguns dias antes do dia previsto para fechar a barragem, Joaquim voltou para casa. E não encontrou Josefina. Havia  apenas uma carta.
                No dia seguinte, Joaquim levou a carta para lerem na vendinha. O seu colega, Nabuco, que sabia um pouco das letras, informou: Josefina havia voltado para a Bahia. Não se conformava em ficar em uma cidade onde o marido fora assassinado tão covardemente.
                No dia 12 de setembro, a barragem foi inaugurada. E as águas, pouco a pouco, começaram a subir. Quando chegava perto de uma casa, a pessoa saía e levava o que podia. Levaria vários dias para cobrir a vila toda.
                Quando as águas começaram a invadir o quartinho de Joaquim, ele não quis ir embora. A tristeza o impedia de ir embora. Ficaria ali para sempre, agarrado às lembranças do amor de outrora.
                Mas alguém bateu à porta. E quando Joaquim abriu...
                Era o Presidente. O Juscelino em pessoa.
                Mais ao longe, o Israel Pinheiro, e uma comitiva de engenheiros. Deviam ter vindo fiscalizar a obra.
                O Presidente stendia-lhe a mão. E enquanto Joaquim o cumprimentava, deu-lhe um conselho bem mineiro:
                - O seu amigo, o Nabuco ali da vendinha, com quem acabei de falar, disse que você quer se afogar... Meu amigo, nenhuma mulher vale a pena esse sofrimento. Venha comigo, e me ajude a terminar essa capital, que também é sua!
                E o olhar de JK era radiante, como se vislumbrasse a própria profecia de Dom Bosco em seu rosto. Do santo que na Itália previu em um sonho uma cidade de onde jorrava o leite e o mel.
                E assim, Joaquim deixou seu quarto. Nas mãos do Presidente.
                Coisas que só naquela época, só em Brasília haveria.
                No ano seguinte, a cidade foi inaugurada. Grande festa. Mas não foi nesta nova cidade que Joaquim foi morar.
                Ao contrário de Dom Bosco, bom na arte de profetizar, o mesmo não acontecera com JK. A cidade era de todos... Não era não! Era dos ricos! E os tolos, que fossem morar nas cidades-satélites.
                Alugou um quarto na Vila do IAPI, que ainda ficara de pé depois da inauguração. Era agora o que chamavam de invasão, o mesmo que uma favela. E foi lá que um dia recebeu a visita de uma mulher. A irmã de Josefina, com uma criança de um mês no colo.
                Era sua filha.
Josefina saíra de Brasília grávida, e ele não sabia.
                A irmã de Josefina explicou que a vida na Bahia estava dura. E que a Josefina não queria que a criança tivesse um destino tão ingrato quanto o dela.
                A criança chamava-se Júlia.
                Joaquim nunca mais casou. E Júlia tornou-se sua única filha. Também nunca mais viu Josefina.
                E agora, de frente para o lago, que tragara todas as suas mais doces e trágicas lembranças, Joaquim recordava a ironia que fora sua vida, ligada a de uma cidade cuja origem fora de maior ironia ainda.
                De permitir tanta chance a tanta gente. Dera educação à filha, que se tornara professora. E uma das netas passara em concurso público, e morava no Plano Piloto. Dera à luz agora ao seu bisneto. Não melhoraram de vida? Quando e onde ele poderia dar esperança para as gerações que depois dele viriam?
                E ao mesmo tempo era uma cidade que tantas vidas sacrificara. Cada edifício, cada prédio, tinha as fundações batizadas em sangue. Não só do massacre da GEB, mas dos diversos acidentes. O corpo sumia antes que chegassem perto, nem se sabia o nome de quem morria.
                E tudo isso para satisfazer o ego de alguns poderosos. Uma cidade tão linda, calma e pacífica, nas mãos de alguns ingratos, que pisaram nos que a construíam...
                E com a filha e a neta do seu lado, mais uma vez Joaquim mirou o lago, que refletia a tarde avermelhada como um espelho perfeito. Agora o vento suspirava de mansinho, desfazendo aquela imagem, e acariciando de leve aquelas águas.
                Chamou a filha:
                - Venha cá, Brasinha!
                Pois era assim, que a chamavam em casa, de Brasinha! Pois Júlia nascera com a cidade, que desde então florescera. Quando era bebê, Joaquim não a chamava de Júlia, mas de Brasília, minha pequena Brasília! E de tanto assim repetir, virara Brasinha, mais uma criança, uma flor, no jardim de uma esperança sempre renovada, a cada candanguinho vindo a esse mundo de sofrimento.

A meu avô, Manoel, pioneiro da construção de Brasília, e minha avó, Isabel, sua companheira nessa jornada.


Nota do autor: esse conto é baseado livremente em fatos reais. Tanto o massacre na Pacheco Fernandes pela GEB quanto a inundação da Vila Amaury pelo Lago Paranoá realmente aconteceram. As prostitutas perto do Hotel Nacional também existiram, assim como a Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, e a vila do IAPI. Outros detalhes, como a maneira de construir o Congresso Nacional, também são reais. As datas dos acontecimentos são precisas.

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