Dizem
que no começo de Brasília, na época da construção, havia uma senhora que morava
em um barraco na Vila Amaury.
Naquela
época, os candangos que construíam Brasília moravam em alojamentos. Cada
conjunto destes alojamentos, de até sessenta mil homens, era chamado de vila. E cada construtora fazia a sua, onde dormiam seus empregados. Em geral, o nome de cada vila era dado conforme o
nome da própria construtora. Porém no caso da Vila da Amaury, saiu do nome do engenheiro responsável.
Acontece
que essa mulher já era estranha em um ambiente só de homens. Morava só, e ninguém
sabia de onde vinha. Pelo sotaque, difícil de adivinhar... Seria de Minas,
Pernambuco, ou Paraná? Ninguém sabia precisar.
À
boca pequena diziam: “deve ser mulher da vida”. Mas uma senhora matrona como
aquela, os cabelos bagunçados, e faltando um dente da frente, por maior que
fosse a necessidade do pessoal, na Cidade Livre havia oferta melhor que
aquela...
Mas,
de fato, era em outras artes que ela se revelava. Da mandinga, adivinhação, e
quem sabe até um olho gordo... Do barraco vinha um cheiro estranho, de incenso
e mau agouro.
A
fama se espalhou de que as mandingas traziam sorte e um destino melhor. Quem
não quer mudar seu destino na terra abençoada por Dom Bosco, ainda que se aproveitando
de artes que o bom santo não aprovaria?...
E
de quando em quando, apesar do medo na espinha, algum caboclo ia lá se
arriscar... o soldo dos trabalhadores só saía no sábado e
ela gostava de ser paga à vista. E era caro!
Porém
um dia, um destes caboclos, de nome Deomar da Silva, resolveu pela janela
pular, depois de tomar um chá, e pegar sua garrafada.
E
agora, ele fugido no meio daquele povo, sem pagar? Só na Vila Amaury tinha
gente de fartar... quem diria na cidade toda, ainda em construção? Onde aquele
sacripanta poderia estar?
E
a velha teve uma ideia. Pegou um pedaço de pau, e nele derramou veneno de sapo,
baba de quiabo e sal.
Naquela
época, todo mundo já sabia, a Vila Amaury ficava onde seria o leito do Lago
Paranoá. Assim que fechassem a barragem, todos deveriam sair de suas casas e
partir para outro lugar.
A
velha misteriosamente botou o pau, ensebado naquela mistura toda, de pé em
frente ao seu barraco. E se pôs a esperar.
Fecharam
a barragem, a água começou a subir. Candango por candango, quando a água no seu
alojamento chegava, sabia que era hora de se ir.
Menos
a velha: quando a água ali chegou, nem saiu do seu barraco. Da porta olhou para
o pau e disse:
-
Essa água daqui não passa!
Na vila, a história espalhou-se como rastilho
de pólvora. Que uma velha senhora parou a água.
Vieram
os engenheiros. Não acreditavam. Foram ter com o Israel Pinheiro (1). Que muito
menos acreditou. Foi olhar com os próprios olhos que a terra há de comer. E
teve que dar o braço a torcer.
A
velha, do barraco só olhava. Seus olhos brilhavam e diziam – vitória!
Os
candangos diziam que era feitiçaria da velha. Mas os engenheiros pensavam em
cálculos, geologia. Feitiçaria? Nada disso. Explicaria a ciência.
Tinha
um engenheiro no Rio, famoso por criticar o Presidente. Que na cidade criada
por JK, aquele lago não encheria. O terreno era poroso, sugaria aquela água.
Falaram
com a assessoria da Presidência, sem JK saber. Ele ficaria furioso se o lago
não enchesse. E trouxeram o fulano do Rio secretamente.
Esse
engenheiro pegou amostras do terreno, louco para provar sua teoria. Examinou,
olhou... e ficou encucado. Pois chegou a uma conclusão: era ele quem estava
errado!
O
terreno era argiloso, próprio para sustentar um lago. A água deveria encher, e
muito!
E
então? Tentaram todas as explicações. Mas nenhuma servia. Não havia
contradição. O lago encheria de fato, ou deveriam queimar os seus diplomas.
No
desespero, pediram para alguém, protegido pela noite, ir aquele pau tirar do
lugar. Mas quando a pessoa estava pronta para o pau furtar, a velha estava na
porta, os olhos bem abertos. E só fez um sinal com o dedo. Nã-nã-nã-nã-nã-nã.
Não senhor.
A
pessoa correu de medo. Chamaram de covarde, com medo de uma velha? Ah, é? Então
vai outro no meu lugar. Todo mundo se olhou. Ninguém ia ter coragem de ir lá.
Mexer naquele pau, com a velha vigiando, nem pensar.
Veio
uma comitiva conversar com a velha. Não custava dialogar. E a velha revelou seu
preço: não queria mais dinheiro. Mas a cabeça de Deomar. De preferência, em uma
bandeja de prata, como São João Batista.
Por
essa eles não esperavam. Dinheiro não era problema. Mas matar um homem é uma
história bem diferente.
Juscelino
veio Brasília visitar. E a falta de um lago é algo que não dá para disfarçar.
Israel
Pinheiro e Niemeyer tentaram o Presidente distrair. Levaram-no no Congresso, na
Catedral... Só que era o lago que Juscelino queria conferir.
Toca
para o lago... que lago? Juscelino não podia acreditar... tiveram que contar a
história da velha da Vila Amaury.
Juscelino
se virou para eles... Ai, é agora que o presidente bossa-nova perde a
compostura. Mas o Presidente só deu um sorriso.
Afinal,
quem lidava com o bruxo do Lacerda (2) diariamente lá no Rio, não ia dar conta
daquela senhora?
“Mineiro
é mineiro. Deixem comigo. Só encontrem esse tal de Deomar, que preciso que
conversemos os três.”
Acharam
o tal Deomar. Que foi ter com o Presidente tremendo. Já sabia o preço da velha.
E
foi ele e a velha ter uma reunião a portas fechadas com o Presidente da
República. No barraco da velha.
A
reunião até que foi curta. Não mais que meia hora. Deomar saiu primeiro,
vivinho da silva, e aliviado.
Depois
saiu a velha satisfeita ao lado do Presidente. Era como se fossem velhos
amigos. Ela mesma pegou o pau, arrancou e jogou fora. E a água voltou a subir
na mesma hora.
Ninguém
soube qual foi o acordo. E o caso foi abafado, para não chegar nos jornais.
Meses
depois, Brasília foi inaugurada, sem nenhum outro problema.
Mas
a velha virou lenda na nova capital. Ninguém sabia dizer se ela de verdade
existia. Mesmo assim, criaram sobre ela várias
teorias. Dizem até que JK não cumpriu o combinado. E que foi por isso que,
tempos depois, o Jânio renunciou.
Mas
na verdade, à velha foi oferecida uma
casinha no Cruzeiro. Naquela época não custava tanto, hoje vale um bom
dinheiro.
Além,
isso quase ninguém sabe, à velha foi concedida uma grande honra, parte do preço
que foi pago. A de aconselhar todos os Presidentes da República desde então.
Afinal,
quem entendia do lago era ela, e não os engenheiros. Pelo sim, pelo não, não
custava ouvir a velha senhora. JK, bem mineiro, juntou o útil e o agradável.
Mas
não se preocupem, a velha é democrática. Foi por causa dela que o Geisel
resolveu fazer a abertura. E o Figueiredo era seu queridinho na época da
Anistia. Mas saiu de lá aos pontapés, quando o Congresso reprovou as Diretas
Já.
O
Collor nem passou da porta. E deu no que deu.
Por
isso, quem for bom observador, vai ver, de vez em quando, um carro oficial
saindo de madrugada, lá do Palácio da Alvorada.
Afinal,
a Dilma quer sair da crise.
Mas
a velha está pensando em se mudar. Um certo mineiro não para de lá passar. Já
está incomodando. Apesar de ela sempre lembrar que eleição ela não pode influenciar.
É decisão soberana do povo.
E
para quem quer um golpe, já adiantou: sem essa, meu colega . Eleição, só em
2018.
Notas do
Autor:
(1) Israel Pinheiro (Caeté,
04/01/1896— Caeté, 06/07/1973) era político em Minas Gerais. Foi presidente da
Novacap, empresa pública responsável pela construção de Brasília. Foi também o
primeiro administrador da cidade.
(2) Carlos
Lacerda (Carlos Frederico Werneck de
Lacerda) (Rio de Janeiro, 30/04/1914 – Rio de Janeiro, 21/05/1977) era jornalista,
proprietário do jornal Tribuna da Imprensa, e político. Tramou um golpe contra
Juscelino em 1955 e era seu principal adversário. Em 1960 tornou-se governador
do Estado da Guanabara.
Críticas, dúvidas, sugestões? Não pire... é só escrever pra gente! felipesilvaberlim@gmail.com
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