Pirei no Conto

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quinta-feira, 5 de março de 2015

A Carícia do Vento sobre as Águas (versão final)



           

             De pé, com a Ermida Dom Bosco às suas costas, quatro gerações fitavam em silêncio as águas calmas do Paranoá.
                À direita, a neta, Helena. À sua frente, a bisneta Mariana, com pouco mais de um mês, em um carrinho. À esquerda, Júlia, a filha. E no centro, o pai, Joaquim.
                Joaquim, um pioneiro. Candango, como se dizia antigamente. Um dos últimos.
                Da Ermida, podiam ver, depois do lago, o Congresso Nacional, e o mastro com a bandeira. Mais ao lado, o Banco Central e a sede da Caixa Econômica. Aqueles prédios, tão altos, à distância pareciam pequeninos. E toda a cidade era como uma frágil maquete.
                - Lindo, não é, vovô?
                Mas Joaquim nada respondeu. Só tirou do bolso um envelope fechado.
                Júlia sabia o que aquilo significava. E por um momento, faltou-lhe a respiração.
                Joaquim viera a Brasília com dezenove anos, de Piancó, na Paraíba, no início de 59. A cidade então era um imenso canteiro de obras. A terra tingia de vermelho as roupas e os corpos dos trabalhadores. Conseguiu emprego na Pacheco Fernandes. E se juntou à massa dos candangos.
                Os homens começavam as obras de madrugada, e só terminavam tarde da noite. Mal encostava a cabeça no travesseiro, no beliche onde dormia, e os alto-falantes já chamavam para o trabalho que mais uma vez começava.
                Nos domingos, a vila ganhava vida. Finalmente podiam comprar alguns mantimentos. O salário saía sempre no dia anterior, aos sábados, o último dia de trabalho da semana.  
Alguns aproveitavam a folga para ir perto do Hotel Nacional ter com as putas. Elas levavam uma toalha nas costas, e uma bolsa nos ombros. Se alguém se dispusesse a uma aventura, era uma horinha entre as árvores do cerrado. As putas botavam a toalha no chão, e ali eles se deitavam. Depois elas tiravam uma toalhinha menor da bolsa para se limpar.
                No fim do domingo, os trabalhadores se recolhiam cedo, para o reinício do trabalho no dia seguinte. E antes de dormir, no interior dos quartos, fumavam um cigarro, e conversavam para contar histórias, matando a saudade de casa.
                Foi em uma destas ocasiões que Joaquim conheceu Amaro. Ele viera do interior da Bahia. A esposa insistiu em vir com ele. Coisa rara. Normalmente os caboclos vinham do Nordeste e deixavam famílias inteiras no estado de origem, à espera da inauguração da capital. Mas Josefina tinha insistido em vir junto. Não queria perder a oportunidade de conhecer algo além dos limites da cidade pequena onde viviam.
                Por sorte, ela conseguiu trabalho na Pacheco, ajudando na cozinha do bandejão. Enquanto Amaro dormia com os outros, Josefina ficava com as poucas mulheres existentes em outro alojamento.
                Amaro dizia:
- Só quero fazer algum dinheiro e depois voltar pra minha terra. Esse lugar aqui não presta.
                E saía a desfiar para Joaquim suas reclamações. Esperava outra coisa da cidade “onde jorraria o leite e o mel” - a profecia de Dom Bosco já se encontrava na boca de todos, alimentando a esperança de tempos melhores. Não para Amaro. Sentia cansaço demais: começavam cedo a trabalhar, mas não havia hora para acabar. E a comida vinha cada vez pior.
                Joaquim passou a defender Brasília: era uma oportunidade, falavam que ali todos seriam iguais. Amaro duvidava. Não era o que via e vivia a cada dia.
                E o tempo passou a provar aquilo que Amaro dizia. JK tinha pressa. A cidade precisava ficar pronta em pouco mais de um ano. As jornadas, que já eram extensas, aumentaram cada vez mais. Até o momento em que os trabalhadores braçais começaram a trabalhar vinte e quatro horas seguidas.
                Muitos candangos, no domingo, costumavam tomar banho e se perfumar para ir à Cidade Livre, como então era conhecido o Núcleo Bandeirante. Lá iam para farrear. Chegavam tarde, e se atrasavam para o trabalho no outro dia. Por isso, fecharam as torneiras. Não havia mais água na Vila Pacheco nem para lavar as mãos.
Com as jornadas duplas, a falta de água e a comida ruim, outros, como Amaro, começaram a reclamar. E outros ainda, como Joaquim, ficavam quietos, pois precisavam do emprego.
Mas o rancor daquela situação começava a se acumular de forma explosiva.
                Dia 07 de fevereiro era sábado de carnaval. E nada de receberem o soldo. No dia seguinte, no bandejão, quando Amaro experimentou,  a comida estava completamente azeda. Estragada.
                Amaro se levantou. Muitos outros com ele na multidão. Foram reclamar da comida. Josefina se assustou com aquilo, tirou o avental e saiu dali. Conhecia o temperamento do marido. O chefe da cozinha foi conversar. Disse que a comida estava ótima, e que se começassem a se amotinar, ia chamar a GEB.
                A GEB era a Guarda Especial de Brasília, que mantinha a ordem na cidade ainda em construção. Amaro e os outros não se acovardaram. Grande quantidade de peões se aglomerava. Com o sangue quente nas veias, irritados com aquela resposta atravessada, entraram pulando na cozinha, jogando panelas e bandejas no chão.
                O chefe conseguiu escapar, e cumpriu a promessa.
                Veio a GEB, já com o cassetete na mão. Soltaram a mão nos caboclos. Tá-tá-tá-tá!!! Mas os candangos eram muitos, e a situação começou a se inverter. Desarmaram um dos guardas, que tentou se afastar do aglomerado, fugindo para não apanhar. Os outros guardas subiram nos carros correndo, para se afastarem daquele povo enfurecido.
                Amaro saiu ferido, mas feliz: tinham dado uma lição naqueles cabras. Quem sabe agora respeitavam mais aqueles que faziam a cidade com as próprias mãos. Aqueles que tinham vindo de longe, atendendo ao chamado do Presidente, mas não para serem tratados como bicho, e não gente.
                Mas naquela noite, Joaquim acordou de forma repentina. A porta do quarto foi arrombada um forte chute. Não houve tempo sequer para levantar da cama. Ouviu um som de tiros, uma dor lancinante na perna. Apesar da dor, o instinto o manteve em silêncio.
                - Acabamos por aqui, simbora pro próximo – disse alguém na escuridão.
                Ouviu o som de passos se afastando. Tomou coragem para descer do beliche.
                Com a perna machucada, a muito custo chegou à parede. Achou o interruptor. Quando acendeu, viu uma cena que lhe deu pavor.
                Os companheiros do quarto, ainda em suas camas. Metralhados. Cobertos de sangue. Mortos.
                Entre eles estava Amaro.
                Correu o quanto podia para fora dali. Repentinamente, as luzes da rua foram desligadas. Enquanto isso, continuava a ouvir o som de tiros por todos os lados, e gritos de desespero.
                Escondeu-se no matagal perto. E esperou até o amanhecer. E na luz parca da aurora, viu os caminhões cheios de corpos que se afastavam.
                De manhãzinha, sentiu-se seguro. Arrastou-se como pôde até a enfermaria. Nela mais outros se encontravam espalhados no chão, sendo cuidados pelos poucos que podiam prestar socorro. Foi por fim levado ao hospital.
                De volta à Vila Pacheco, procurou por Josefina no alojamento das moças. Ela o abraçou tremendo. Perguntou onde estava Amaro.
                Quando Joaquim relatou o que tinha visto, Josefina se ajoelhou no chão de tanta agonia.
                A notícia do massacre se espalhou. As autoridades tentaram abafar. A Associação dos Trabalhadores da Construção de Brasília conseguiu burlar a repressão, e alguns escondidos foram até Goiânia, de onde mandaram um telegrama para a Presidência da República no Rio.
                Diversos jornais, de todo o país, relatavam o desastre na Capital da Esperança. Dois repórteres de Belo Horizonte vieram para tentar discernir a verdade dos acontecimentos. Sem grande sucesso – os relatos se contradiziam, ninguém conseguia precisar exatamente o ocorrido.
                Uma única coisa era certa: a GEB estava por trás de tudo aquilo. Uma matança para vingar a humilhação que passaram no domingo.
                Os engenheiros responsáveis pela construção se esquivavam. Até mesmo a Presidência negava a chegada de qualquer telegrama.
                E no meio de todo esse alvoroço, Joaquim não teve mais coragem de continuar na Vila Pacheco. Conseguiu trabalho na Vila Amaury, responsável pela construção do Congresso e dos Ministérios, e se mudou.
                Na Vila Amaury, o clima era de maior camaradagem. No dia de folga, as pessoas escolhiam as músicas que tocavam nos alto-falantes.
Mas aquele lugar tinha dia e hora para acabar. Ficava onde seria mais tarde o Lago do Paranoá. Na parte mais estreita do vale, uma barragem era construída. Ficaria pronta em setembro.
Estavam todos avisados – a vila era provisória. Assim que a barragem fosse concluída, seria engolida pelas águas.
Mas Joaquim com isso não se importava. Com o trabalho pesado, queria esquecer tudo que havia acontecido na noite do massacre.
Trabalhava agora na construção do Congresso. O edifício era apenas um grande esqueleto.
Havia muita preocupação. As ferramentas para fixar as vigas de aço não existiam. Deveriam ser importadas. Mas não havia tempo para isso.
Por fim encontraram a solução. Os pinos eram jogados para o alto, já vermelhos de tão quentes, e os hábeis candangos pegavam-nas com luvas e introduziam nos buracos. O metal fervendo desenhando estrelas cadentes no céu escuro e silencioso da noite do Planalto Central.
E enquanto Joaquim pegava com atenção aquelas estrelas de aço na palma de suas mãos, não deixava de pensar por onde andaria Josefina.
                Uma vez, Joaquim foi com alguns colegas ter com as prostitutas no Hotel Nacional. Estava nervoso. Não dizia para os outros, para não lhe fazerem troça.
Mas na verdade, nunca havia deitado com uma moça.
E quando chegou, reconheceu uma delas, a toalha nas costas. Era ela. Josefina. E em Joaquim subiu a raiva.
                Aproximou-se, e brigou com ela. O que estava fazendo no meio daquelas desavergonhadas? Mas Josefina só chorou, disse que ainda não tinha feito nada. Mandaram-na embora da Pacheco Fernandes por ter saído do bandejão no meio do alvoroço e abandonado o trabalho. Agora não tinha nem o que comer. O desespero a tinha levado ali. Mas não conseguira ainda se entregar a ninguém, não tinha coragem.
                Joaquim abraçou-a em seu desespero, e deixou-a desmanchar em lágrimas. A mágoa, por tantos dias contida, no peito de Joaquina, por fim expressada.
                Conversaram durante a tarde toda.
No fim do dia, Joaquim levou Josefina para conhecer onde agora morava. Ela tinha desabafado, e estava mais calma. Joaquim garantiu que conseguiria para ela um trabalho novo, na vendinha do Nabuco, um amigo que na vila fizera.
Josefina ficou conversando com ele no quarto. Os outros homens ainda demoravam a voltar. E os olhares de Josefina e de Joaquim se cruzaram.
Beijaram-se. E naquela noite, dormiram juntos.
No dia seguinte, quando Joaquim acordou, não encontrou mais ninguém, só os colegas dormindo nos outros beliches. Ao seu lado, no travesseiro, uma carta. Não sabia ler, mas sabia que era de Josefina.
Foi correndo à vendinha do Nabuco, que sabia das artes das letras.
                 Nabuco leu com alguma dificuldade, mas sentenciou: Josefina havia voltado para a Bahia. Não se conformava em ficar em uma cidade onde o marido fora assassinado tão covardemente.
                No dia 12 de setembro, a barragem foi inaugurada. E as águas, pouco a pouco, começaram a subir. Quando chegava perto de uma casa, a pessoa saía e levava o que podia. Levaria vários dias para cobrir a vila toda.
                E quando aquela água barrenta começou a invadir o quartinho de Joaquim, os outros rapazes se foram e levaram seus pertences.
Mas ele não, não queria ir embora. Apaixonara-se por Josefina, a primeira e única mulher em sua vida.
Ficaria ali para sempre. Mesmo que as águas do lago o cobrissem.
 O Nabuco foi ter com ele:
                - Deixa de ser frouxo. Vambora. Ainda há de ter muita mulher na vida. Não vale a pena.
                Mas dali Joaquim não arredaria.
                Por fim ouviu alguém abrir a porta.
                E para sua grande surpresa era o Presidente. O próprio JK.
                Estava com Israel Pinheiro, e uma comitiva, verificando as obras da barragem, e o sucesso do lago, já que as águas subiam.
                E enquanto dava uma mão para Joaquim, que a apertou com todo o respeito, Juscelino de dentro do quarto o puxava, para o mundo dos vivos:
                - Lá em Diamantina, filho, também já sofri com mulher. Dói o peito, é uma lástima. Mas venha aqui que tenho algo melhor. Venha me ajudar a construir Brasília, sua capital. A capital de todos nós!
                E Joaquim via nos olhos de Juscelino, um brilho, uma certeza. Da cidade duradoura, de todos os brasileiros!
                E assim saiu do quarto.
                No ano seguinte, a cidade foi inaugurada. Grande festa.
Mas não foi na cidade de todos que Joaquim foi morar.
                Alugou um quarto na Vila do IAPI, que sobreviveu à inauguração. Era agora uma favela, em Brasília chamada de invasão.
E foi lá que um dia recebeu a visita de uma mulher estranha. Vinha com uma criança de poucos meses no colo.
Falou que era irmã de Josefina. Que a vida na Bahia era dura. E que Josefina, mãe da menina, não tivesse um destino tão ingrato quanto o reservado para ela.
                Só falou um pouco mais. Disse que a criança chamava-se Júlia.
                Joaquim perguntou se a menina era também sua filha. Mas a irmã de Josefina se calou. Despediu-se, foi-se embora, sem revelar a cidade onde Josefina estava. Pegaria naquela noite um ônibus, para a Bahia retornava.
                Joaquim criou Júlia como se de seu sangue fosse. Mas sempre teve dúvida. Seria ela a filha de Amaro, ou a própria semente de Joaquim, fruto da única noite em que com Josefina estivera junto?
                E agora, de frente para o lago, onde no fundo repousava a Vila Amaury, Joaquim recordava a ironia que fora sua vida, ligada a de uma cidade cuja origem fora de maior ironia ainda.
                De permitir tanta chance a tanta gente. Dera educação à filha, que se tornara normalista. A neta fizera faculdade, morava no Plano Piloto, e dera à luz ao seu bisneto. Não havia Brasília proporcionado a elas uma melhor vida do que a dele? Quando e onde ele poderia dar esperança para as gerações que depois dele vinham?
                E ao mesmo tempo era uma cidade que tantas vidas sacrificara. Cada edifício, cada prédio, tinha as fundações batizadas em sangue. Não só do massacre da GEB, mas dos diversos acidentes. O corpo sumia antes que chegassem perto, nem se sabia o nome de quem morria.
                E tudo isso para satisfazer o ego de alguns poderosos. Uma cidade tão linda, calma e pacífica, nas mãos de alguns ingratos, que pisaram nos que a construíram...
                E com a filha e a neta do seu lado, mais uma vez Joaquim mirou o lago, que refletia a tarde avermelhada como um espelho perfeito.
Nas mãos, depois de tantos anos, um envelope com um exame. O exame que comprovaria ser ele o pai de Júlia. Ou não?
Por fim, chegou a uma conclusão.
Na frente de Júlia e da neta, que aguardavam solenes Joaquim abrir o envelope, com a emoção mal contida, Joaquim começou a rasgá-lo em pedaços, para surpresa das duas.
Júlia tentou impedi-lo, mas foi tarde.
Joaquim jogou os pedaços do papel sobre o lago.
Caíam aos poucos, levados pela brisa. E pousaram lentamente, desfazendo o espelho da superfície.
E o vento suspirava de mansinho, acariciando de leve aquelas águas.
Os pedaços se espalhavam rapidamente, e logo foram levados.
Joaquim virou-se para elas, e as abraçou. Os olhos molhados de lágrimas:
“Não preciso de papel, pois entendi agora o que precisava.
Tanto você, Júlia, quanto esta cidade, criei com o suor do rosto.
 E quando falo da cidade, falo também de muitos outros, que construíram Brasília com as mãos calejadas!
Não importa de onde vem o sangue.
O importante é a verdade mais profunda. De você e desta cidade sempre vou ser pai, e não padrasto!”
A meu avô, Manoel, pioneiro da construção de Brasília, e minha avó, Isabel, sua companheira nessa jornada.


Nota do autor: esse conto é baseado livremente em fatos reais. Tanto o massacre na Pacheco Fernandes pela GEB quanto a inundação da Vila Amaury pelo Lago Paranoá realmente aconteceram. As prostitutas perto do Hotel Nacional também existiram, assim como a Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, e a vila do IAPI. Outros detalhes, como a maneira de construir o Congresso Nacional, também são reais. As datas dos acontecimentos são precisas.

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