De pé, com a Ermida Dom Bosco às suas costas, quatro
gerações fitavam em silêncio as águas calmas do Paranoá.
À
direita, a neta, Helena. À sua frente, a bisneta Mariana, com pouco mais de um
mês, em um carrinho. À esquerda, Júlia, a filha. E no centro, o pai, Joaquim.
Joaquim,
um pioneiro. Candango, como se dizia antigamente. Um dos últimos.
Da
Ermida, podiam ver, depois do lago, o Congresso Nacional, e o mastro com a
bandeira. Mais ao lado, o Banco Central e a sede da Caixa Econômica. Aqueles
prédios, tão altos, à distância pareciam pequeninos. E toda a cidade era como
uma frágil maquete.
-
Lindo, não é, vovô?
Mas
Joaquim nada respondeu. Só tirou do bolso um envelope fechado.
Júlia
sabia o que aquilo significava. E por um momento, faltou-lhe a respiração.
Joaquim
viera a Brasília com dezenove anos, de Piancó, na Paraíba, no início de 59. A
cidade então era um imenso canteiro de obras. A terra tingia de vermelho as
roupas e os corpos dos trabalhadores. Conseguiu emprego na Pacheco Fernandes. E
se juntou à massa dos candangos.
Os
homens começavam as obras de madrugada, e só terminavam tarde da noite. Mal
encostava a cabeça no travesseiro, no beliche onde dormia, e os alto-falantes
já chamavam para o trabalho que mais uma vez começava.
Nos
domingos, a vila ganhava vida. Finalmente podiam comprar alguns mantimentos. O
salário saía sempre no dia anterior, aos sábados, o último dia de trabalho da
semana.
Alguns aproveitavam a folga para
ir perto do Hotel Nacional ter com as putas. Elas levavam uma toalha nas
costas, e uma bolsa nos ombros. Se alguém se dispusesse a uma aventura, era uma
horinha entre as árvores do cerrado. As putas botavam a toalha no chão, e ali
eles se deitavam. Depois elas tiravam uma toalhinha menor da bolsa para se
limpar.
No
fim do domingo, os trabalhadores se recolhiam cedo, para o reinício do trabalho
no dia seguinte. E antes de dormir, no interior dos quartos, fumavam um cigarro,
e conversavam para contar histórias, matando a saudade de casa.
Foi
em uma destas ocasiões que Joaquim conheceu Amaro. Ele viera do interior da
Bahia. A esposa insistiu em vir com ele. Coisa rara. Normalmente os caboclos
vinham do Nordeste e deixavam famílias inteiras no estado de origem, à espera
da inauguração da capital. Mas Josefina tinha insistido em vir junto. Não
queria perder a oportunidade de conhecer algo além dos limites da cidade
pequena onde viviam.
Por
sorte, ela conseguiu trabalho na Pacheco, ajudando na cozinha do bandejão.
Enquanto Amaro dormia com os outros, Josefina ficava com as poucas mulheres
existentes em outro alojamento.
Amaro
dizia:
- Só quero fazer algum dinheiro e
depois voltar pra minha terra. Esse lugar aqui não presta.
E
saía a desfiar para Joaquim suas reclamações. Esperava outra coisa da cidade
“onde jorraria o leite e o mel” - a profecia de Dom Bosco já se encontrava na
boca de todos, alimentando a esperança de tempos melhores. Não para Amaro.
Sentia cansaço demais: começavam cedo a trabalhar, mas não havia hora para
acabar. E a comida vinha cada vez pior.
Joaquim
passou a defender Brasília: era uma oportunidade, falavam que ali todos seriam
iguais. Amaro duvidava. Não era o que via e vivia a cada dia.
E
o tempo passou a provar aquilo que Amaro dizia. JK tinha pressa. A cidade
precisava ficar pronta em pouco mais de um ano. As jornadas, que já eram
extensas, aumentaram cada vez mais. Até o momento em que os trabalhadores
braçais começaram a trabalhar vinte e quatro horas seguidas.
Muitos
candangos, no domingo, costumavam tomar banho e se perfumar para ir à Cidade
Livre, como então era conhecido o Núcleo Bandeirante. Lá iam para farrear. Chegavam
tarde, e se atrasavam para o trabalho no outro dia. Por isso, fecharam as
torneiras. Não havia mais água na Vila Pacheco nem para lavar as mãos.
Com as jornadas duplas, a falta de
água e a comida ruim, outros, como Amaro, começaram a reclamar. E outros ainda,
como Joaquim, ficavam quietos, pois precisavam do emprego.
Mas o rancor daquela situação
começava a se acumular de forma explosiva.
Dia
07 de fevereiro era sábado de carnaval. E nada de receberem o soldo. No dia
seguinte, no bandejão, quando Amaro experimentou, a comida estava completamente azeda.
Estragada.
Amaro
se levantou. Muitos outros com ele na multidão. Foram reclamar da comida.
Josefina se assustou com aquilo, tirou o avental e saiu dali. Conhecia o
temperamento do marido. O chefe da cozinha foi conversar. Disse que a comida
estava ótima, e que se começassem a se amotinar, ia chamar a GEB.
A
GEB era a Guarda Especial de Brasília, que mantinha a ordem na cidade ainda em
construção. Amaro e os outros não se acovardaram. Grande quantidade de peões se
aglomerava. Com o sangue quente nas veias, irritados com aquela resposta
atravessada, entraram pulando na cozinha, jogando panelas e bandejas no chão.
O
chefe conseguiu escapar, e cumpriu a promessa.
Veio
a GEB, já com o cassetete na mão. Soltaram a mão nos caboclos. Tá-tá-tá-tá!!!
Mas os candangos eram muitos, e a situação começou a se inverter. Desarmaram um
dos guardas, que tentou se afastar do aglomerado, fugindo para não apanhar. Os
outros guardas subiram nos carros correndo, para se afastarem daquele povo
enfurecido.
Amaro
saiu ferido, mas feliz: tinham dado uma lição naqueles cabras. Quem sabe agora
respeitavam mais aqueles que faziam a cidade com as próprias mãos. Aqueles que
tinham vindo de longe, atendendo ao chamado do Presidente, mas não para serem
tratados como bicho, e não gente.
Mas
naquela noite, Joaquim acordou de forma repentina. A porta do quarto foi
arrombada um forte chute. Não houve tempo sequer para levantar da cama. Ouviu
um som de tiros, uma dor lancinante na perna. Apesar da dor, o instinto o
manteve em silêncio.
-
Acabamos por aqui, simbora pro próximo – disse alguém na escuridão.
Ouviu
o som de passos se afastando. Tomou coragem para descer do beliche.
Com
a perna machucada, a muito custo chegou à parede. Achou o interruptor. Quando
acendeu, viu uma cena que lhe deu pavor.
Os
companheiros do quarto, ainda em suas camas. Metralhados. Cobertos de sangue. Mortos.
Entre
eles estava Amaro.
Correu
o quanto podia para fora dali. Repentinamente, as luzes da rua foram
desligadas. Enquanto isso, continuava a ouvir o som de tiros por todos os
lados, e gritos de desespero.
Escondeu-se
no matagal perto. E esperou até o amanhecer. E na luz parca da aurora, viu os
caminhões cheios de corpos que se afastavam.
De
manhãzinha, sentiu-se seguro. Arrastou-se como pôde até a enfermaria. Nela mais
outros se encontravam espalhados no chão, sendo cuidados pelos poucos que
podiam prestar socorro. Foi por fim levado ao hospital.
De
volta à Vila Pacheco, procurou por Josefina no alojamento das moças. Ela o
abraçou tremendo. Perguntou onde estava Amaro.
Quando
Joaquim relatou o que tinha visto, Josefina se ajoelhou no chão de tanta agonia.
A
notícia do massacre se espalhou. As autoridades tentaram abafar. A Associação
dos Trabalhadores da Construção de Brasília conseguiu burlar a repressão, e alguns
escondidos foram até Goiânia, de onde mandaram um telegrama para a Presidência
da República no Rio.
Diversos
jornais, de todo o país, relatavam o desastre na Capital da Esperança. Dois
repórteres de Belo Horizonte vieram para tentar discernir a verdade dos
acontecimentos. Sem grande sucesso – os relatos se contradiziam, ninguém
conseguia precisar exatamente o ocorrido.
Uma
única coisa era certa: a GEB estava por trás de tudo aquilo. Uma matança para
vingar a humilhação que passaram no domingo.
Os
engenheiros responsáveis pela construção se esquivavam. Até mesmo a Presidência
negava a chegada de qualquer telegrama.
E
no meio de todo esse alvoroço, Joaquim não teve mais coragem de continuar na
Vila Pacheco. Conseguiu trabalho na Vila Amaury, responsável pela construção do
Congresso e dos Ministérios, e se mudou.
Na
Vila Amaury, o clima era de maior camaradagem. No dia de folga, as pessoas
escolhiam as músicas que tocavam nos alto-falantes.
Mas aquele lugar tinha dia e hora
para acabar. Ficava onde seria mais tarde o Lago do Paranoá. Na parte mais
estreita do vale, uma barragem era construída. Ficaria pronta em setembro.
Estavam todos avisados – a vila
era provisória. Assim que a barragem fosse concluída, seria engolida pelas
águas.
Mas Joaquim com isso não se
importava. Com o trabalho pesado, queria esquecer tudo que havia acontecido na
noite do massacre.
Trabalhava agora na construção do
Congresso. O edifício era apenas um grande esqueleto.
Havia muita preocupação. As
ferramentas para fixar as vigas de aço não existiam. Deveriam ser importadas.
Mas não havia tempo para isso.
Por fim encontraram a solução. Os
pinos eram jogados para o alto, já vermelhos de tão quentes, e os hábeis candangos
pegavam-nas com luvas e introduziam nos buracos. O metal fervendo desenhando
estrelas cadentes no céu escuro e silencioso da noite do Planalto Central.
E enquanto Joaquim pegava com
atenção aquelas estrelas de aço na palma de suas mãos, não deixava de pensar
por onde andaria Josefina.
Uma
vez, Joaquim foi com alguns colegas ter com as prostitutas no Hotel Nacional. Estava
nervoso. Não dizia para os outros, para não lhe fazerem troça.
Mas na verdade, nunca havia
deitado com uma moça.
E quando chegou, reconheceu uma
delas, a toalha nas costas. Era ela. Josefina. E em Joaquim subiu a raiva.
Aproximou-se,
e brigou com ela. O que estava fazendo no meio daquelas desavergonhadas? Mas
Josefina só chorou, disse que ainda não tinha feito nada. Mandaram-na embora da
Pacheco Fernandes por ter saído do bandejão no meio do alvoroço e abandonado o
trabalho. Agora não tinha nem o que comer. O desespero a tinha levado ali. Mas
não conseguira ainda se entregar a ninguém, não tinha coragem.
Joaquim
abraçou-a em seu desespero, e deixou-a desmanchar em lágrimas. A mágoa, por
tantos dias contida, no peito de Joaquina, por fim expressada.
Conversaram
durante a tarde toda.
No fim do dia, Joaquim levou
Josefina para conhecer onde agora morava. Ela tinha desabafado, e estava mais calma.
Joaquim garantiu que conseguiria para ela um trabalho novo, na vendinha do
Nabuco, um amigo que na vila fizera.
Josefina ficou conversando com ele
no quarto. Os outros homens ainda demoravam a voltar. E os olhares de Josefina
e de Joaquim se cruzaram.
Beijaram-se. E naquela noite,
dormiram juntos.
No dia seguinte, quando Joaquim
acordou, não encontrou mais ninguém, só os colegas dormindo nos outros
beliches. Ao seu lado, no travesseiro, uma carta. Não sabia ler, mas sabia que
era de Josefina.
Foi correndo à vendinha do Nabuco,
que sabia das artes das letras.
Nabuco leu com alguma dificuldade, mas
sentenciou: Josefina havia voltado para a Bahia. Não se conformava em ficar em
uma cidade onde o marido fora assassinado tão covardemente.
No
dia 12 de setembro, a barragem foi inaugurada. E as águas, pouco a pouco,
começaram a subir. Quando chegava perto de uma casa, a pessoa saía e levava o
que podia. Levaria vários dias para cobrir a vila toda.
E
quando aquela água barrenta começou a invadir o quartinho de Joaquim, os outros
rapazes se foram e levaram seus pertences.
Mas ele não, não queria ir embora.
Apaixonara-se por Josefina, a primeira e única mulher em sua vida.
Ficaria ali para sempre. Mesmo que
as águas do lago o cobrissem.
O Nabuco foi ter com ele:
-
Deixa de ser frouxo. Vambora. Ainda há de ter muita mulher na vida. Não vale a
pena.
Mas
dali Joaquim não arredaria.
Por
fim ouviu alguém abrir a porta.
E
para sua grande surpresa era o Presidente. O próprio JK.
Estava
com Israel Pinheiro, e uma comitiva, verificando as obras da barragem, e o
sucesso do lago, já que as águas subiam.
E
enquanto dava uma mão para Joaquim, que a apertou com todo o respeito,
Juscelino de dentro do quarto o puxava, para o mundo dos vivos:
-
Lá em Diamantina, filho, também já sofri com mulher. Dói o peito, é uma
lástima. Mas venha aqui que tenho algo melhor. Venha me ajudar a construir
Brasília, sua capital. A capital de todos nós!
E
Joaquim via nos olhos de Juscelino, um brilho, uma certeza. Da cidade duradoura,
de todos os brasileiros!
E
assim saiu do quarto.
No
ano seguinte, a cidade foi inaugurada. Grande festa.
Mas não foi na cidade de todos que
Joaquim foi morar.
Alugou
um quarto na Vila do IAPI, que sobreviveu à inauguração. Era agora uma favela,
em Brasília chamada de invasão.
E foi lá que um dia recebeu a
visita de uma mulher estranha. Vinha com uma criança de poucos meses no colo.
Falou que era irmã de Josefina.
Que a vida na Bahia era dura. E que Josefina, mãe da menina, não tivesse um
destino tão ingrato quanto o reservado para ela.
Só
falou um pouco mais. Disse que a criança chamava-se Júlia.
Joaquim
perguntou se a menina era também sua filha. Mas a irmã de Josefina se calou.
Despediu-se, foi-se embora, sem revelar a cidade onde Josefina estava. Pegaria
naquela noite um ônibus, para a Bahia retornava.
Joaquim
criou Júlia como se de seu sangue fosse. Mas sempre teve dúvida. Seria ela a
filha de Amaro, ou a própria semente de Joaquim, fruto da única noite em que
com Josefina estivera junto?
E
agora, de frente para o lago, onde no fundo repousava a Vila Amaury, Joaquim
recordava a ironia que fora sua vida, ligada a de uma cidade cuja origem fora
de maior ironia ainda.
De
permitir tanta chance a tanta gente. Dera educação à filha, que se tornara
normalista. A neta fizera faculdade, morava no Plano Piloto, e dera à luz ao
seu bisneto. Não havia Brasília proporcionado a elas uma melhor vida do que a
dele? Quando e onde ele poderia dar esperança para as gerações que depois dele
vinham?
E
ao mesmo tempo era uma cidade que tantas vidas sacrificara. Cada edifício, cada
prédio, tinha as fundações batizadas em sangue. Não só do massacre da GEB, mas
dos diversos acidentes. O corpo sumia antes que chegassem perto, nem se sabia o
nome de quem morria.
E
tudo isso para satisfazer o ego de alguns poderosos. Uma cidade tão linda,
calma e pacífica, nas mãos de alguns ingratos, que pisaram nos que a construíram...
E
com a filha e a neta do seu lado, mais uma vez Joaquim mirou o lago, que
refletia a tarde avermelhada como um espelho perfeito.
Nas mãos, depois de tantos anos,
um envelope com um exame. O exame que comprovaria ser ele o pai de Júlia. Ou não?
Por fim, chegou a uma conclusão.
Na frente de Júlia e da neta, que
aguardavam solenes Joaquim abrir o envelope, com a emoção mal contida, Joaquim
começou a rasgá-lo em pedaços, para surpresa das duas.
Júlia tentou impedi-lo, mas foi
tarde.
Joaquim jogou os pedaços do papel
sobre o lago.
Caíam aos poucos, levados pela
brisa. E pousaram lentamente, desfazendo o espelho da superfície.
E o vento suspirava de mansinho,
acariciando de leve aquelas águas.
Os pedaços se espalhavam
rapidamente, e logo foram levados.
Joaquim virou-se para elas, e as
abraçou. Os olhos molhados de lágrimas:
“Não preciso de papel, pois
entendi agora o que precisava.
Tanto você, Júlia, quanto esta
cidade, criei com o suor do rosto.
E quando falo da cidade, falo também de muitos
outros, que construíram Brasília com as mãos calejadas!
Não importa de onde vem o sangue.
O importante é a verdade mais
profunda. De você e desta cidade sempre vou ser pai, e não padrasto!”
A meu avô, Manoel, pioneiro da construção de
Brasília, e minha avó, Isabel, sua companheira nessa jornada.
Nota do autor:
esse conto é baseado livremente em fatos reais. Tanto o massacre na Pacheco
Fernandes pela GEB quanto a inundação da Vila Amaury pelo Lago Paranoá
realmente aconteceram. As prostitutas perto do Hotel Nacional também existiram,
assim como a Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, e a vila do IAPI. Outros
detalhes, como a maneira de construir o Congresso Nacional, também são reais. As
datas dos acontecimentos são precisas.
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